Esta pesquisa busca compreender por que o samba de bumbo, ou samba rural paulista, vem passando por um processo de apagamento e descaracterização. O autor estuda o vocabulário popular relacionado a essa manifestação artística e o movimento recente de resistência e articulação para fortalecê-la. Segundo ele, desde os anos 1930 tal modalidade de samba tem desaparecido por diversos fatores, como o preconceito religioso e racial e a espetacularização e hegemonia proveniente de uma indústria cultural ostensiva.
Ao longo dos anos, o samba de bumbo paulista vem aos poucos desaparecendo, despojando-se de características marcantes e práticas tradicionais. Na pesquisa, buscamos estudar o vocabulário da manifestação para compreender o porquê desse paulatino apagamento e identificar os fatores que contribuíram (e contribuem) para tanto. As palavras e suas relações em contexto revelam a historicidade de um povo, nos permitem investigar e explicar visões de mundo e sistemas de valores de comunidades. Por meio delas, pudemos empreender uma viagem em direção às antigas sambadas e festejos do interior do Estado para melhor entender os trajetos que compõem a arqueologia do samba de bumbo. O que ele é? O que mudou? Por quais motivos isso aconteceu? Para onde ele vai?
O estudo permitiu a constituição de uma base documental significativa, que poderá ser utilizada na elaboração de dicionários gerais e específicos, uma vez que a documentação do vocabulário dos praticantes do samba de bumbo – e mesmo da respectiva época, nas localidades dos grupos tradicionais – é extremamente escassa. Pelo fato de não incitar o mesmo interesse documental de seus irmãos baiano e carioca, seja por razões mercadológicas ou políticas, os registros de tradição oral permanecem como a fonte de maior importância para o samba de bumbo, e este trabalho em muito contribui para a ampliação de tais registros. No entanto, para além das implicações de ordem descritivas, a pesquisa auxilia na identificação dos processos opacos que têm levado ao provável apagamento da manifestação, apontando os locais de enfrentamento e permitindo uma melhor estratégia de resistência à opressão cultural – e isso, a nosso ver, é a sua maior contribuição.
O trabalho tem como objetivo geral estudar o vocabulário de uma modalidade de samba paulista conhecida como samba de bumbo, ou, seguindo clássico ensaio de Mário de Andrade, samba rural paulista. Já o objetivo específico do estudo é registrar as unidades lexicais de uso popular da referida expressão cultural, de modo a averiguar se a população das localidades onde o samba de bumbo continua sendo praticado já não mais reconhece e utiliza, frequentemente, os vocábulos relacionados à manifestação. Os resultados demonstram que o samba de bumbo passa por um processo de apagamento refletido no léxico das localidades investigadas, principalmente em meio aos não praticantes, mas também indicam o recente movimento de reestruturação dos grupos, que resistem e se articulam buscando fortalecer a manifestação. De outra parte, ao evidenciarem os processos opacos que contribuíram para o enfraquecimento do samba, tais resultados ainda permitem demarcar o local de enfrentamento das práticas de resistência hoje promovidas pelos grupos tradicionais e não tradicionais de samba de bumbo.
Ao final da pesquisa, confirmamos as seguintes hipóteses: (1) a população das localidades onde o samba de bumbo continua sendo praticado já não mais reconhece e utiliza, frequentemente, o vocabulário relacionado à manifestação; (2) os grupos de samba de bumbo não apresentam mais as mesmas características, perdendo alguns elementos verificados na primeira metade do século 20; e (3) desde os anos 1930 a manifestação tem se apagado em razão de fatores diversos, como o preconceito religioso e racial e a espetacularização e hegemonia proveniente de uma indústria cultural ostensiva. Para que o samba volte a ser praticado de maneira espontânea, é preciso veicular sua história, os embates por que passa e procurar compreender a fundo as transformações que sofre, de modo a tornar visíveis as turvas motivações de tais mudanças – o que procuramos fazer na pesquisa.
A pesquisa importa aos estudos de História da Língua Portuguesa. De uma perspectiva pedagógica, também aponta para a importância do ensino relacional e não depositário: registrando-se traços culturais de um povo (como a língua) aproximamos do professor e da matéria lecionada a realidade do educando. Acredito, por outro lado, que o estudo interessa de fato aos amantes da cultura popular e, especificamente, aos praticantes do samba de bumbo. Plínio Marcos afirma que “um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas, jamais será um povo livre”. Podemos estender esse entendimento para “um povo que não possui atividade crítica, jamais será um povo livre”, e prática de resistência implica conscientização das dimensões ideológicas presentes no discurso. Os resultados da pesquisa permitem demarcar a zona de enfrentamento. Cabe aos jovens praticantes, e novos chefes dos grupos tradicionais, trilhar inteligentemente os caminhos do bumbo, como fizeram os sambadores e sambadeiras que os antecederam.
Mario Santin Frugiueleé mestre em Letras pela USP (Universidade de São Paulo), integra os projetos de História do Português Paulista e História e Variedade do Português Paulista às Margens do Anhembi. Possui bacharelado em Direito pela PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e também é graduando em Letras (com ênfase em Língua Portuguesa e Língua Italiana) na USP.
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