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Matheus Gomes

A prisão de Paulo Galo é racista e ditatorial

07 de agosto de 2021

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A falácia da democracia racial que ergue estátuas de escravistas é um elemento da manutenção das desigualdades no Brasil, e o motoboy representa isso em sua vivência como trabalhador e ativista

Desde 29 de julho, Paulo Roberto da Silva Lima, o “Galo”, está preso em São Paulo. Trata-se de uma prisão política – na verdade, mais uma, neste país que vive a agonia de um processo acelerado de “desdemocratização”. Acompanho Galo atentamente desde o seu surgimento na cena política e sei que ele nunca desfrutou da plenitude das liberdades democráticas. Homem negro e morador da periferia, casado com Géssica e pai de uma menina de três anos, ficou conhecido no auge da pandemia por representar os anseios de um segmento superexplorado da classe trabalhadora, os entregadores por aplicativo.

Hoje, a sua detenção aparece como um revide do Estado, que se negou a agir em prol da garantia de seus direitos enquanto motoboy mas atuou rapidamente para restringir as suas possibilidades de ação política enquanto cidadão. O fato é que não é apenas este que vos fala, um jovem negro e socialista como Galo, que pensa dessa forma. Na quinta-feira (5), o Ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça, afirmou, em decisão liminar favorável à soltura de Galo, que “a decretação desse encarceramento, parece ter se preocupado mais com o movimento político de que o paciente participa, do que com os possíveis atos ilícitos praticados por ele” . No entanto, até este momento, a juíza Gabriela Bertoli mantém a prisão de Galo, agora sob a forma jurídica de prisão preventiva.

É importante refletir que, após a ação direta sobre a estátua do bandeirante Borba Gato, organizada pelo Coletivo Revolução Periférica, o monumento em memória de Carlos Marighella foi coberto por tinta vermelha, bem como a homenagem a Marielle Franco, ambos em São Paulo. Sabemos também que as chamas sequer comprometeram a estrutura desta homenagem espúria ao escravismo, no entanto, a mesma sorte não foi experimentada pela Cinemateca Brasileira, alvo de um incêndio criminoso, em 29 de julho, produto do descaso de Bolsonaro com a preservação do acervo histórico da nossa produção audiovisual. Nenhum destes fatos criminosos resultou em prisões.

O tratamento diferenciado da Justiça brasileira com o povo negro e os movimentos sociais é o que explica. Ao criminalizar uma liderança política negra, que ousou falar da necessidade de subversão da maioria periférica em uma das maiores megalópoles do planeta, o objetivo da Justiça e dos governantes paulistas é impedir que a consciência crítica se desenvolva ao ponto do sentimento de revolta antirracista, ainda fragmentado nas quebradas, se transformar em mobilizações de massas, como as que derrubaram estátuas mundo afora no último ano.

Sua detenção aparece como um revide do Estado, que se negou a agir em prol da garantia de seus direitos enquanto motoboy mas atuou rapidamente para restringir as suas possibilidades de ação política enquanto cidadão

O medo do acerto de contas da burguesia brasileira com o seu passado genocida e escravocrata é o que move a manutenção da prisão de Galo. É possível imaginar uma estátua de um ministro de Hitler ou de um oficial da SS, o braço militar do Partido Nazista, numa rua de Berlim? É óbvio que não. E por qual motivo, num Brasil de maioria negra e indígena, temos que conviver com estátuas, bairros, ruas e avenidas que levam o nome de estupradores, torturadores e saqueadores, homens brancos que perpetraram o genocídio com os povos originários deste país?

Galo formou a sua consciência política no hip-hop e por isso sabe, como disse Mano Brown , que a carta que desmorona o castelo protetor da desigualdade e da injustiça no Brasil é o racismo estrutural. Acabar com homenagens a escravocratas é parte da luta pela garantia de um futuro digno ao povo negro e trabalhador deste país. E isso é assim pois a falácia da democracia racial funciona permanentemente como um elemento de manutenção das desigualdades e Galo representa isso em sua vivência: do motoboy tradicional ao moderno entregador por aplicativo, é o jovem negro que sofre as consequências da modernização da economia que preserva nossos irmãos de cor na base da pirâmide social. O chicote que estala em 2021 pode ser diferente, mas a mão que o coordena continua da mesma cor.

Para quem acha um exagero, as recentes decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo estão escancarando a lógica de autoproteção do sistema. Em 1° de agosto, um dos motivos apontados para a manutenção da prisão de Galo foi o fato dele pertencer ao movimento de Entregadores Antifascistas, ou seja, uma restrição à garantia do direito constitucional de liberdade de organização. Já na sexta-feira (6), a decisão que transformou a sua prisão temporária em preventiva foi ainda mais absurda, já que nada de novo foi aditado ao caso, rasgando de uma vez por todas as garantias democráticas.

A verdade é que Galo e o Coletivo Revolução Periférica jamais atrapalharam qualquer investigação sobre a ação direta de 24 de julho. Ele se apresentou de forma espontânea na delegacia, entregou o seu celular, publicizou o endereço de sua residência, que quando vistoriada não produziu qualquer prova criminal. Manter Galo preso com o objetivo de obter informações sobre o movimento que ele faz parte é uma prática de tortura, que preserva os pilares da Doutrina de Segurança Nacional da ditadura militar. Pelos direitos da classe trabalhadora e do povo negro e indígena, é preciso lutar pela liberdade de Paulo Galo. Que esta mensagem ecoe longe. Força e solidariedade, ninguém ficará pra trás!

Matheus Gomes

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