Coluna

Luciana Brito

O endividamento como política social na ‘bola de neve’ do auxílio

08 de agosto de 2022

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O crédito consignado atrelado ao Auxílio Brasil transformou o país num grande balcão de negócios. O governo federal concedeu aos bancos o poder de negociar não só a vida financeira, mas também a dignidade das pessoas

Nos últimos dias muito tem se falado em educação financeira e como ela é fundamental para a vida da população pobre, sobretudo após a aprovação do crédito consignado para as famílias que recebem o Auxílio Brasil.

Novamente recaiu sobre as famílias, ou melhor, para as mulheres que lideram essas famílias, a responsabilidade sobre o endividamento extremo que se prevê das pessoas mais pobres. Assim, a possibilidade de “tomar um empréstimo consignado” que tem como garantia o benefício de R$ 600, passou a ser vista por alguns jornalistas e especialistas em finanças como uma tentação sobre a qual padeceriam as famílias pobres, dada a sua inabilidade de gerenciar seu próprio dinheiro.

Embora eu acredite que educação financeira seja sim algo de fundamental importância, é relevante atentar para o risco de, mais uma vez, estarmos colocando nestas mulheres pobres a culpa por não poderem honrar seus futuros pagamentos, fruto da sua suposta inabilidade de administrar as suas finanças. Este pequeno texto é para lembrar que, embora vivamos em outro momento histórico e que várias mudanças ocorreram na vida das populações negras ao longo destes anos, mulheres negras já foram as grandes comerciantes, visionárias, investidoras e credoras da história do Brasil, e até hoje o são. Com seu trabalho, acumularam pequenos ou grandes bens que se converteram em liberdade para várias pessoas das suas famílias.

É mês de agosto e é mês de lembrar das lições deixadas até hoje pelas mulheres da Irmandade da Boa Morte, uma organização secular formada por mulheres escravizadas e libertas da cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Isso porque, o debate que atribui às famílias pobres a culpa por uma inabilidade de gestão financeira, certamente não conhece a história destas mulheres que, já no século XIX, criaram na Bahia o principio daquilo que conhecemos como “caixa”, através do qual um grupo se reúne para, mensalmente, cada pessoa retirar de forma circular e sucessiva uma determinada quantia em dinheiro administrada por uma gestora, que garantiria que todas as pessoas participantes da “caixa” tanto depositassem determinada quantia fixa quanto, ao final, todas as pessoas envolvidas recebessem uma quantia pré-estabelecida.

Essa habilidade de comprar, vender e guardar dinheiro pode ser vista facilmente entre as mulheres trabalhadoras, que sabem onde é o melhor mercado do bairro para comprar, a melhor hora para ir à feira, as estratégias para fazer a comida ser suficiente para todas as pessoas de uma família ou de uma coletividade maior. Administrar o pouco, e nunca o muito, sempre foi algo comum na vida das mulheres que trabalham e que são pobres, mas realmente é muito difícil fazer conta que feche quando estamos falando de miséria.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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