Rio 2017: balanço e horizontes para além dos jogos

Ensaio

Rio 2017: balanço e horizontes para além dos jogos
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José Marcelo Zacchi


30 de julho de 2016

O saldo é de uma cidade mais uma vez falhando em compreender que não pode haver contemporaneidade sem cidadania universal, qualificação da vida pública e um horizonte ampliado de desenvolvimento sustentável

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O dia 11 de agosto de 1908 foi de festa no Rio de Janeiro. Dia de inauguração da exposição nacional de centenário da inauguração dos portos no país, em uma área vasta com mais de 30 pavilhões recém-construídos na atual avenida Pasteur, na Urca. Com o evento, a cidade celebrava sua modernização recente, marcada pela inauguração da avenida Rio Branco, no centro, em 1904, o Teatro Municipal em construção, a abertura da avenida Beira-Mar, ligando o antigo núcleo urbano à nova área de casarões afluentes na Zona Sul nascente, emulando no conjunto o melhor da arquitetura e do urbanismo da época.

O outro lado da história é conhecido. A expulsão de moradores para a abertura das novas avenidas no centro impulsionou a ocupação dos morros pela população desalojada, na origem das favelas. O concurso para escolha do projeto para o Teatro Municipal motivou polêmica intensa, com a vitória do filho do então prefeito Pereira Passos. A antiga capital do Império, que apenas há pouco havia iniciado a criação de um sistema de saneamento e lutava contra as epidemias causadas pelo Aedes Aegypti, viu a expansão urbana estender a degradação das águas da cidade colonial ao conjunto completo da sua faixa costeira, lagoas e baías. E o chefe da polícia avisava já em 1916 em “Pelo Telefone”, de Donga, primeiro samba registrado na história, que na Carioca havia uma roleta para se jogar.

Cem anos depois, não é que nada tenha mudado. O balanço justo do ciclo olímpico que termina permite incluir avanços não desprezíveis – a nova malha de BRTs, a expansão de serviços de atenção básica em saúde e educação fundamental, além da beleza da nova Rio Branco e do Museu do Amanhã a cumprir o papel do Municipal como marco simbólico da vez. Mas não há como deixar de desconcertar-se com o paralelo, na evidência das continuidades essenciais: o Rio olímpico, como a velha capital republicana, não tem como ocultar a negligência com a tarefa essencial de integração das favelas e superação de fronteiras urbanas, os enlaces obscuros entre ação pública e interesses privados, a extensão do fracasso do saneamento na visão da Guanabara desde o mesmo Museu do Amanhã. Mais além do perímetro dos Jogos, visualizando-se por inteiro, não pode ignorar o questionamento de prioridades diante da condição de 22o estado brasileiro com pior distribuição de renda, metrópole com maior tempo diário perdido no trânsito no país e palco de 4.000 mortes violentas anuais, distribuídas por seu território na proporção inversa das atenções públicas sobre elas.

Lançamos na semana passada na Cinelândia, palco do Centro do Rio que viu todas as transformações desses séculos, a Campanha #Rio2017, reunindo 50 organizações da sociedade civil da cidade e do país no esforço conjunto de propor ideias e prioridades para o Rio do pós-Jogos.

O saldo é de uma cidade mais uma vez falhando em compreender que não pode haver contemporaneidade sem cidadania universal, qualificação da vida pública e um horizonte ampliado de desenvolvimento sustentável. E que chega agora ao fim de mais um ciclo, pós-capital, declínio e grandes eventos com a constatação de ter ficado muito aquém nisso do que seria preciso para a aprovação do mundo e, antes de tudo, a experiência cotidiana dos seus moradores.

Mas se esta parece já ser a síntese agora que os Jogos chegaram, cabe entender as razões, mas também mais do que nunca a tarefa renovada de extrair as lições para superá-la, na afirmação devida do que ficou por fazer.

Com este espírito, lançamos na semana passada na Cinelândia, palco do Centro do Rio que viu todas as transformações desses séculos, a Campanha #Rio2017 , reunindo 50 organizações da sociedade civil da cidade e do país no esforço conjunto de propor ideias e prioridades para o Rio do pós-Jogos. Do Mobiliza Japeri, no extremo mais pobre da metrópole fluminense, ao Atletas pelo Brasil, reunindo esportistas comprometidos com a tarefa da cidadania para além das arenas; do Fórum Comunitário do Jardim Gramacho, tornado símbolo dos desafios sociais e ambientais da cidade ao sediar por 36 anos o maior lixão da América Latina, desativado em 2012, ao Instituto Ethos de responsabilidade empresarial; do Movimento Baía Viva, envolvendo moradores, pescadores e agentes diversos no chamado essencial para uma Guanabara recuperada, ao Programa Cidades Sustentáveis. Seguindo em arco amplo de parceiros com históricos múltiplos de ação pelo Rio, a campanha agrega trajetórias identificadas pelo sentido de materializar uma metrópole mais justa, democrática e sustentável para todos, como legado primordial de toda ação pública.

O princípio baseia também a Agenda Rio 2017 , fruto de encontros e consultas com vozes diversas de toda a metrópole, reunindo propostas de políticas para a cidade neste rumo. A partir dele, e da consciência do Rio como mais do que a faixa costeira que historicamente concentrou as atenções sobre ele, não é difícil desdobrar uma pauta nova e estimulante para os desafios à frente: promover a descentralização de oportunidades econômicas na metrópole e sua conjugação adequada com políticas de moradia e transportes; rever prioridades que nos levam a destinar 7  vezes mais recursos públicos à expansão do metrô entre as duas áreas mais ricas da cidade do que à qualificação da malha de trens metropolitanos, ou acumular em 20 anos de programas para a despoluição da Baía da Guanabara não mais que 1/3 dos gastos governamentais destinados à realização da Olimpíada. O saldo é de uma cidade mais uma vez falhando em compreender que não pode haver contemporaneidade sem cidadania universal, qualificação da vida pública e um horizonte ampliado de desenvolvimento sustentável; distribuir investimentos e gastos sociais segundo os indicadores de condições de vida no conjunto do território; focalizar a redução de mortes violentas na Baixada Fluminense e na Zona Oeste da capital, onde estão concentradas; universalizar o acesso regular à água e saneamento; fomentar atividades econômicas em sintonia com esses objetivos; aprimorar os modos de participação, transparência e controle na gestão pública de modo a viabilizar esses avanços de forma duradoura.

Não chegam a ser demandas inovadoras, mas quem conhece a história do Rio sabe a novidade que podem ser. Nos próximos meses, estaremos dedicados à disseminação desta agenda em ações diversas na cidade – circulando em espaços públicos no período dos Jogos para a votação de prioridades, cruzando a metrópole em bicicleta de Japeri a Maricá após o término deles em chamado pela atenção à cidade inteira, levando a pauta ao debate das eleições municipais na capital e nos demais 20 municípios que compõem a metrópole comum, no universo pleno dos seus 12 milhões de habitantes. Se houver um futuro positivo para o Rio agora ele terá que ser construído assim, conjugando esforços diversos em novo horizonte da cidade desejável, e na disposição para realizá-la. Além do convite para a visita à Agenda online e a participação nas ações, a Campanha #Rio2017 é chamado aberto para a tarefa, no destino comum.

Voltando a ciclos históricos, é interessante hoje lembrar que na origem da primeira candidatura olímpica do Rio, no início dos anos 90, esteve a promoção da Agenda Social liderada por Betinho, vendo na iniciativa mote possível para a superação de desafios enraizados da cidade, em país que então se democratizava. Não foi desta vez, mas quem sabe a lembrança neste caso não podendo ser ainda de inspiração, em fazer do momento ponto de partida naquilo que não pôde ainda ser de chegada.

José Marcelo Zacchi é coordenador geral da Associação Casa Fluminense.

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