“Qual é o sentido de tanta construção? — pergunta.
Qual é o objetivo de uma cidade em construção
senão uma cidade? Onde está o plano que vocês seguem, o projeto?”
(Italo Calvino, em “As Cidades Invisíveis”)
Com empreendimentos em 5.563 municípios — 92% de todas as cidades brasileiras, o Minha Casa Minha Vida é o maior programa habitacional do país. Desde 2009, ano de sua criação, cerca de R$ 320 bilhões já foram investidos para a construção de 4,4 milhões de unidades habitacionais que beneficiaram em torno de 20 milhões de pessoas.
O número de unidades construídas é o mesmo feito em 22 anos (entre 1964 e 1986) pelo Banco Nacional de Habitação (o BNH), no período da ditadura militar. Mas não é só o número de empreendimentos que é o mesmo. Repetiu-se também os erros do passado ao reproduzir um modelo de habitação popular que empurra os mais pobres para além das periferias das cidades, em regiões com deficiências na oferta de infraestrutura, transporte público e emprego.
Ao analisar o número dos beneficiados pelo programa federal, logo imagina-se a vantagem dessa população em deixar áreas ilegais e de risco para ocupar os conjuntos habitacionais do Minha Casa Minha Vida. Ou que a ocupação desordenada das áreas periféricas já é comum ao modelo de ocupação de terras públicas por populações de baixa renda. Entretanto, uma coisa é quando isso acontece porque faltam opções e oportunidades. Outra, quando é estimulado pelo poder público com investimentos bilionários.
O que determina essa opção por construções mais longínquas é, claro, o custo da terra nas regiões metropolitanas. Quanto menos infraestrutura e mais longe, mais barata a terra é. Mas a economia feita no preço dos terrenos pode sair cara. E nessa conta soma-se ainda a complexidade da cultura da exclusão, como a resistência das classes média e alta de compartilhar a cidade com pessoas de baixa renda, a exemplo do famoso caso do metrô de “gente diferenciada” de Higienópolis, em São Paulo, que acabou com a transferência da nova estação para uma área do bairro mais afastada dos pontos de maior circulação.
A consequência de tudo isso é o aprofundamento da segregação das faixas mais pobres da população e a desigualdade de oportunidades entre quem mora no centro e quem vai morar longe. As pessoas precisam se submeter a horas de viagem para ter acesso às regiões com oferta de emprego, enquanto as prefeituras se veem obrigadas a implementar do zero diversos serviços públicos, como investir em novas linhas de ônibus — e mais subsídios para as passagens —, levar escolas, professores, postos de saúde, médicos, delegacias e policiais para mais longe, ampliar a malha rodoviária e de saneamento básico, entre outros.
Os impactos na mobilidade precisam ainda ser avaliados sob o ponto de vista da saúde pública, sobretudo os custos físicos e psicológicos de quem precisa passar horas no trânsito. Os veículos geram poluição com consequências ambientais e de saúde, incluindo a intensificação da mudança climática e problemas respiratórios. Há impacto no bem-estar psicológico, causado pelo sentimento de impotência diante do trânsito e de sua imprevisibilidade, e o estresse gerado pode influenciar as taxas de violência doméstica, como indicam estudos publicados recentemente em artigo no The New York Times .
Estudo sobre o impacto de um projeto de mobilidade social nos EUA , conduzido pelo brasileiro Rodrigo Pinto, professor assistente de economia da Universidade da Califórnia, aponta ainda como migrar famílias de bairros de alta pobreza para vizinhanças mais abastadas pode ter impacto econômico positivo para elas. O estudo concluiu que famílias que se mudam de um bairro de alta pobreza para um com melhor infraestrutura têm, em média, um aumento de 14% na renda, de 20% no emprego e de 38% na chance de sair da pobreza. Análises como essas contribuem para o desenvolvimento de políticas públicas que, de fato, seriam capazes de reduzir a desigualdade e melhorar a qualidade de vida das pessoas ao longo de gerações.
Fornecer moradia digna em um ambiente que promova o desenvolvimento social e econômico, capaz de gerar ascensão social, deve ser o principal objetivo de políticas públicas de habitação
A questão central é que, desde o início de sua implementação, o arranjo institucional do Minha Casa Minha Vida é criticado por não estabelecer exigências no que diz respeito ao local de construção das unidades habitacionais e oferta de serviços de qualidade. Por isso, o Instituto Escolhas e o Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getúlio Vargas, com apoio da Fundação Tide Setubal, resolveram investigar o impacto do programa na expansão urbana e seus efeitos sobre as metrópoles brasileiras.
A pesquisa avaliou o fenômeno da mancha urbana (áreas das cidades urbanizadas com prédios e infraestrutura) em 20 regiões metropolitanas: Belém, Belo Horizonte, Campinas, Cuiabá, Curitiba, Distrito Federal, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Palmas, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Santos, São Luís, São Paulo, Teresina e Vitória.
Foram analisadas imagens de satélite que identificam pontos classificados como edificados por processamento digital e comparadas imagens de 2005 (antes do início do programa) e 2015. O primeiro aspecto observado é que, sim, a mancha urbana cresceu nessas regiões.
O segundo aspecto foi descobrir a influência do Minha Casa Minha Vida na expansão territorial desses municípios. A conclusão é que onde o programa federal construiu mais casas, o crescimento aconteceu em saltos, ou seja, não ocupou áreas que já estavam habitadas ou espaços vazios dentro das cidades, e sim regiões fora delas, criando novos espaços vazios. O estudo mostra que um aumento de 10% no número de unidades do programa implica que a cidade aumentará a proporções de saltos em 2,4% e reduzirá os preenchimentos (empreendimentos nas áreas centrais) em 1,8%.
Por fim, em 11 das regiões metropolitanas avaliadas, foram identificadas coordenadas georreferenciadas de 82.909 unidades habitacionais contratadas até março de 2013 na faixa 1 do programa, destinadas à população com renda familiar mensal de até R$ 1.600,00. As análises comprovam que em oito delas a maioria das unidades foi construída em áreas fora da mancha urbana.
O Minha Casa Minha Vida fez o movimento correto ao oferecer mais moradia à população de baixa renda, mas cometeu os pecados de não prover infraestrutura e de estimular que as cidades brasileiras continuem se expandindo indefinidamente em cidades contínuas.
Em vez de repetir o padrão dos programas de habitação popular anteriores, o Minha Casa Minha Vida deveria inovar e induzir a construção de unidades nos espaços não utilizados das áreas mais centrais e já urbanizadas dos municípios. É possível colocar mais moradores em regiões com boa estrutura de transporte, oferta de serviços e mais perto do centro das grandes cidades desde que seja feito o planejamento urbanístico adequado e articulado com as prefeituras.
O chamado adensamento pode diminuir o preço dos imóveis, reduzir o tempo de deslocamento entre casa e trabalho, promover melhor aproveitamento da infraestrutura e ser ainda uma importante política pública para enfrentar o deficit habitacional crescente, agravado pela crise econômica.
Para os próximos anos, é fundamental que o programa seja aprimorado. Se as regras forem alteradas, o Minha Casa Minha Vida pode juntar os benefícios da maior oferta de habitação popular à qualidade de vida de seus usuários. Fornecer moradia digna em um ambiente que promova o desenvolvimento social e econômico, capaz de gerar ascensão social, deve ser o principal objetivo de políticas públicas de habitação. Enquanto isso não acontece, as periferias continuam a se unir naquilo que são suas grandes dificuldades, sem que o Estado consiga provê-las das condições mínimas de sobrevivência.
Sergio Leitão, advogado, é fundador e diretor executivo do Instituto Escolhas, que desenvolve estudos e análises sobre economia e meio ambiente para viabilizar o desenvolvimento sustentável.