Poderia ser mera efeméride de dezembro, mas os 30 anos de “V ” – um “disco da lama”, diria Renato Russo – ecoam além dos fãs da Legião Urbana. Com tanto do Brasil atual em comum ao de 1991, como a inflação em alta e o governo sem rumo, o disco ressignifica o efeito “direto do túnel do tempo”. O repertório e seu quê de rock progressivo seguem datados, mas seu ar de ressaca o torna trilha não só dos anos Collor. “V” vira “balzaquiano” como o título de “A mulher de 30 anos” também pelo afã cronista à la Balzac.
“Pelo que estava acontecendo com a nossa vida, com o Collor etc., a gente não estava conseguindo fazer música pra cima”, contou Renato em entrevista a Leoni para o livro “Letra, música e outras conversas”, cuja 2ª edição está no prelo via financiamento coletivo. O bloqueio de renda pelo plano econômico da vez adiou seu projeto da casa própria e o cantor descobriu ter HIV pouco após o vírus sentenciar Cazuza e outros. “Quase acreditei na sua promessa/ E o que vejo é fome e destruição” (“Metal contra as nuvens”) ainda diz muito fora desse épico com herói vaidoso de sua terra e em choque com o mundo. Implícita, a aids entrelaçou-se ao uso desmedido de drogas e à decepção com o sucesso.
O disco abre com “Pois nasci nunca vi amor”, da cantiga de um trovador do século 13 gravada como “Love song”, cujos versos em português arcaico citam a prece do eu-lírico para “mia Senhor” o amparar ou mostrar o amor que quer matá-lo. A segunda faixa, a já citada “Metal contra as nuvens”, situa seu herói frustrado frente a problemas como a fome, a destruição e a mentira. Há ainda o apelo da droga em “A montanha mágica” (“És o que tenho de suave/ E me fazes tão mal”) e “L’âge d’or” (“Já tentei muitas coisas, de heroína a Jesus”) e o desemprego em “O teatro dos vampiros”: “Os meus amigos todos estão procurando emprego” (o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mediu o desemprego em 7,2% em 1992; a taxa mais recente é 13,2%).
A desolação de “O teatro dos vampiros” e sua percussão sem vigor era corrente naquela geração com bolso esvaziado. Os tempos à vista fizeram a letra sair do rumo cogitado antes: a ideia inicial era falar da televisão em meio ao sucesso de personagens vampiros da novela “Vamp”. Renato lamentava assassinos em liberdade e a população em casa por falta de dinheiro. Não à toa, “V” é um item menos pulsante e mais desanimado na sua discografia.
Nada mais em contraste ao tom de um filme sobre outra banda de rock então à venda em VHS. Em “V, o vídeo”, especial do SBT exibido no fim de 1987, os Paralamas do Sucesso esbanjavam alto-astral na turnê país adentro de “Selvagem?”, disco-polaroide do trio com vendas embaladas pelo Plano Cruzado. O trabalho de Sandra Kogut e Roberto Berliner captou o otimismo de Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone. Já naqueles anos Sarney, a “Nova República” se provou só um slogan, mas não faltavam anseios de mudança para melhor – o trio veio a ilustrá-los ainda mais ao se afastar da influência do rock anglófono.
Com tanto do Brasil atual em comum ao de 1991, como a inflação em alta e o governo sem rumo, o disco ‘V’, da Legião Urbana, ressignifica o efeito ‘direto do túnel do tempo
Descontraído, Herbert dizia querer sair com o gravador, registrar sons inusitados como de uma briga de rua e musicá-los. “As pessoas que fazem, que mexem com arte, funcionam meio como antenas de coisas que ‘tão no ar’ e ‘tão aí pra quem pegar’”, avaliou, antes de se identificar ao herói de Woody Allen que adapta a aparência e a persona a cada meio. “A gente é assim, a gente é Zelig, a gente vai pegando tudo que passa na nossa frente e colocando na nossa música até a gente conseguir uma forma que satisfaça.” Daí a exclusão e a fé de “Alagados” (“A arte de viver da fé/ só não se sabe fé em quê”), a infância na rua de “Teerã” (“Se essas crianças vão sempre estar/ pedindo trocados pros vidros fechados”) e a falta de liberdade e o racismo de “Selvagem”.
É triste como tal faixa de 1986 (“A polícia apresenta suas armas/ escudos transparentes, cassetetes/ capacetes reluzentes…”) soa tão 2021. Sob o baque da mais recente chacina por policiais fluminenses, nos representa bem a fala do Renato Russo de 1993 a Zeca Camargo: “Estão fazendo com que o Brasil seja um país de assassinos. É garoto de 15 anos sendo morto pelas costas pela polícia, é menininha sendo estuprada e esquartejada… […] Se eu faço uma letra falando de coisas boas, hoje em dia parece uma coisa irreal”.
Da busca da identidade própria em meados dos anos 1980 ao recuo do rock na década seguinte, artistas como os Paralamas e a Legião sintonizaram outros ares. A excitação se converteu em desilusão, que não tardou a rimar com evasão, vivida de forma distinta: uma banda mirou a receptividade argentina a ela, outra quis fazer receita num CD duplo de gravações ao vivo (“Música p/ Acampamentos”, que retratou bem o trajeto do grupo).
Sabe a velha ideia de que toda decepção é proporcional à expectativa? No release de “V”, o jornalista Ezequiel Neves cravou: “o réquiem para este milênio já está definitivamente gravado”. Exagero retórico à parte, o diagnóstico acerta ao frisar o tom fúnebre e grave do disco – e que o mantém tão atual. Ninguém hesitaria entre o colorido de “V, o vídeo” e o cinza de “V” . Não havendo opções, talvez sirva de alento crer que o monocromático de um realça o valor das cores do outro. E que a trilha de amanhã não continuará a de hoje.
Mario Luis Grangeia é jornalista, doutor em sociologia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), servidor do Ministério Público Federal e pesquisador associado ao centro sobre democracia do Graduate Institute of Geneva. Autor de “Brasil: Cazuza, Renato Russo e a transição democrática” e “Os Paralamas do Sucesso: Selvagem?” (coleção “O Livro do Disco”, no prelo) e coautor de “Conectando as ciências humanas: novos olhares sobre a transdisciplinaridade”.