Um fenômeno na saúde global anda preocupando a comunidade científica e autoridades sanitárias. Ele é caracterizado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma das dez maiores ameaças para a saúde pública global nos próximos anos, ao lado até mesmo das mudanças climáticas e da resistência bacteriana. Trata-se da hesitação vacinal, conhecida por muitos como movimento antivacina, que é caracterizada pela recusa do indivíduo à vacinação devido a fatores místicos, socioculturais, pessoais ou políticos. É bem verdade que existem fatores transversais, como o bombardeio de informações, quase sempre falsas sobre o tema.
O movimento de hesitação às vacinas é um fenômeno que tomou forma no Brasil contemporâneo na primeira metade da década de 2010; notabilizado, sobretudo, pelo aumento de pessoas que se ausentaram nas vacinações, principalmente àquelas para prevenção da caxumba, rubéola e sarampo (comportamento que foi verificado através de estudos de frequência epidemiológica vacinal). De fato, esse movimento surfa na onda do ultraconservadorismo, que passou a ganhar ainda mais força na mesma época. Os antivacina são formados por um caldo de cultura conservador, apolítico, anticientífico e até irônico; ora, o conservadorismo anda longe do liberalismo e da autonomia dos corpos – premissa básica dos que exitam em se vacinar.
Essa versão 4.0 da Revolta da Vacina tem semelhança histórica com o movimento de 1904, em que camadas populares da população carioca se recusaram a tomar a vacina contra a varíola.,. A revolta do século 20, porém, não durou por muito tempo. Diversos fatores ocasionados pela epidemia da doença, fizeram com que a população voltasse atrás e a imunização fosse realizada. Assim, o surto de varíola foi controlado e a campanha de vacinação, liderada pelo sanitarista Oswaldo Cruz, se tornou um dos grandes exemplos de controle sanitário no país.
O combate às fake news é essencial para que a saúde pública possa se fortalecer, enfatizando a importância das campanhas de vacinação
O atual movimento de hesitação vacinal, no entanto, tem fundamentos sólidos, fincados através de um movimento conservador. É verdade que estamos sendo bombardeados diuturnamente com o noticiário televisivo, orientando e traduzindo – de alguma forma – a importância para vacinação; e a comunidade científica internacional se comunica de forma muito mais rápida e eficaz, fazendo com que as informações penetrem os grupos de estudos especializados em questão de segundos. Mas isso, por si só, não parece suficiente para conter o discurso antivacina. E note-se que, à época de Oswaldo Cruz, os testes, apesar de suficientes para assegurar a eficácia do imunizante, eram bem mais frágeis – se comparados com os de hoje.
Esse histórico epidemiológico de hesitação vacinal – juntamente com as grandes guerras – foi fundamental para dar base à criação e fortalecimento da Organização das Nações Unidas e, posteriormente, à Organização Mundial da Saúde. Juntas, essas instituições supranacionais ajudaram a ampliar o acesso à vacinação no mundo. Em 1974, a OMS criou o Programa Ampliado de Imunização para promover a vacinação em escala global contra difteria, tétano e coqueluche. No Brasil, temos o PNI (Programa Nacional de Imunizações), que é considerado uma das referências globais de política pública em saúde por erradicar, nas últimas décadas, a varíola e a poliomielite no país. O programa é responsável pela vacinação de milhões de pessoas no Brasil, promovendo o controle de doenças por meio da imunização em massa.
Nadando contra a maré da ciência, o movimento de hesitação vacinal cresceu em torno de fatores inverídicos expostos na sociedade, fortalecidos por artigos publicados sem revisões por pares e com erros grotescos em sua literatura e pesquisa, além de ser fortalecido pela falta de conhecimento dos indivíduos na eficácia das vacinas. Enfrentar e combater as notícias falsas sobre a vacinação tornou- se rotina dos profissionais da saúde, autoridades sanitárias e da classe política. O combate às fake news e à desinformação é essencial para que a saúde pública possa se fortalecer, enfatizando a importância das campanhas de vacinação para a proteção individual e coletiva da população.
Convergindo com o cenário atual, de rápida comunicação, as redes sociais exercem um papel fundamental para divulgação científica – e não científica também. O mandatário brasileiro atual, através desses espaços cibernéticos, dita para seus seguidores o modo de operação negacionista para com a vacina, excitando a população contra todas as medidas de distanciamento social. Assim, esse é o elemento chave diferenciador entre os tempos históricos aqui tratados: Jair Bolsonaro exerce seu poder como o avesso ao que foi Oswaldo Cruz.
Josevan Souza-Silva é cirurgião-dentista e sanitarista pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Doutorando em saúde coletiva na área de ciências sociais e humanas em saúde pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
Jonathan Vicente é biomédico patologista clínico, especialista em ciência política com ênfase em saúde pública pela USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul) e mestrando em medicina e saúde coletiva na Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). Membro do coletivo negro Ayé da USP, Yale-Proxima Associate’ class 2021.