O autoritarismo furtivo da perseguição a um professor

Ensaio

O autoritarismo furtivo da perseguição a um professor
Foto: Adriano Machado/Reuters - 25.set.2019

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José Eduardo Faria


25 de maio de 2021

O método bolsonarista de afronta às instituições democráticas polariza sectariamente a vida política, nega a legitimidade dos adversários, intimida a imprensa, incita a violência

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Por ter sido chamado de “poste servil do presidente” por Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o procurador-geral da República, Augusto Aras, tomou duas polêmicas iniciativas contra ele. Em primeiro lugar, pediu à reitoria da USP que o submeta a uma avaliação do Conselho de Ética da instituição, sob a justificativa de que o docente teria tomado “para si o prestígio da universidade a fim de conferir maior seriedade ou veracidade a suas críticas infundadas”. Em segundo lugar, abriu contra o professor uma queixa-crime na Justiça Federal, em Brasília.

Como o procurador foi indicado pelo presidente da República para chefiar o Ministério Público Federal, há quase dois anos, e depende dele para ascender ao Supremo Tribunal Federal (sua maior ambição), essas duas medidas não constituem fatos isolados. Pelo contrário, inserem-se na estratégia que vem sendo há algum tempo posta em prática por Bolsonaro e por seu entorno, com o objetivo de recorrer aos procedimentos legais para, mantendo um verniz de respeito à ordem legal, provocar uma dissimulada regressão democrática no país.

Sua trajetória, nesse sentido, é clara. Quando candidato, Bolsonaro mentia compulsivamente e não escondia a propensão a restringir as garantias fundamentais, bradando que “leis devem existir para defender as maiorias, as minorias que se adequem ou desapareçam”. Eleito, passou a dizer que “a Constituição sou eu”; a estimular manifestações regulares, nos fins de semana, contra o Poder Judiciário, o Congresso, governadores; e a fazer apelos populistas ao “povo”, para que lhe desse uma “sinalização”. Durante a campanha, Bolsonaro criticou reiteradamente o que chamou a “velha política” – a sistemática de acordos partidários comuns ao chamado presidencialismo de coalizão –, para depois de alguns meses de gestão inepta se aproveitar dela, convertendo o centrão em condômino do poder.

Uma vez instalado no Palácio do Planalto, Bolsonaro – desprezando a Constituição, que define o Estado brasileiro como laico – prometeu indicar para o Supremo um ministro “terrivelmente evangélico”, independentemente de não ter currículo. O presidente passou a estimular uma competição para ver quem é o mais rastejante dos candidatos ao cargo mais alto do Judiciário. A ponto, por exemplo, de aceitarem de antemão ser convocados nos fins de semana pelo chefe do Executivo para “tomar tubaína”.

Essa é uma forma nada sutil de Bolsonaro dizer que será ele quem determinará como o escolhido para o Supremo deverá julgar e votar. Como consequência, ao aceitar esse convite sem sequer ainda ter sido escolhido, o futuro ministro já assume o cargo inteiramente desmoralizado. E, em vez de autoridade judicial, converte-se em mero peão político encarregado de blindar o presidente da República e seus três filhos contra adversidades judiciais ou, então, de tomar decisões contrárias aos opositores de quem o nomeou. Em outras palavras, uma vez empossado limitar-se-á a interpretar o direito positivo de modo seletivo e enviesado.

Isoladamente, cada uma dessas falas parece não ter consequências, como se fosse curto o tempo de vida útil das mentiras, das acusações falsas e das bobagens do presidente, bem como das humilhações sofridas por quem aceita rastejar para tentar chegar ao Supremo. À primeira vista, são demonstrações de vulgaridade, incontinência retórica e demagogia política que não envolveriam necessariamente violações jurídicas, não comprometeriam a ordem constitucional e não subverteriam a democracia. Envolveriam, quando muito, bizarrices e falsidades ditas por um mentiroso compulsivo que, como dizia Hannah Arendt, “tem a vantagem de saber de antemão o que a plateia deseja ou espera ouvir”, o que lhe “permite preparar sua história com muito cuidado para consumo público, de modo a torná-la crível”.

Banalização, trivialização e aparelhamento de órgãos de controle institucional constituem uma estratégia dissimulada para a substituição da democracia liberal por um autoritarismo furtivo

Analisados de modo cuidadoso, todavia, vê-se então que o problema não está no impacto pontual de cada fala, por mais abjeta que seja. O problema está, isto sim, em seus efeitos cumulativos. Vistos nesta perspectiva, todos os casos acima mencionados não deixam margem para dúvidas. Evidenciam que o método bolsonarista de afronta às instituições democráticas, polarizando sectariamente a vida política, negando a legitimidade dos adversários, tratando oponentes políticos como inimigos, questionando resultados de eleições, intimidando a imprensa, incitando a violência e invadindo áreas de competência legislativa do Congresso tem efeitos institucionalmente corrosivos.

Esse método banaliza o esvaziamento de direitos e garantias fundamentais. Naturaliza a utilização de mecanismos legais do regime democrático com o objetivo de aprovar medidas antidemocráticas. Trivializa o uso de uma Lei de Segurança Nacional repleta de tipos penais abertos, herdada dos tempos da ditadura militar, para amedrontar críticos, desestimulando-os a buscar o reconhecimento judicial do direito de expressão e da liberdade de opinião previstos pela Constituição. E aparelha os tribunais, ao mesmo tempo em que propicia o recurso a normas constitucionais para – por meio de raciocínios tortuosos, silogismos e interpretações absurdas de parlamentares, chefes da Procuradoria-Geral da República e ministros de cortes superiores – enfraquecer as instituições estabelecidas pela redemocratização do país, desrespeitando as minorias e neutralizando os órgãos de controle.

Banalização, trivialização, naturalização e aparelhamento de órgãos de controle institucional constituem assim uma estratégia dissimulada para, sem mudanças abruptas, abrir caminho para a substituição da democracia liberal por um autoritarismo furtivo e dissimulado, no qual os governantes tentam minar possíveis resistências de partidos, da mídia e de tribunais. Como lembra o cientista político Adam Przeworski, os executores dessa estratégia são autocratas que tentam ampliar seus poderes recorrendo a instrumentos do próprio regime democrático, o que lhes conferiria um verniz de legitimidade. No limite, quando situações como essa se prolongam por muito tempo, a ordem democrática e constitucional entra em colapso.

Por isso, a iniciativa do procurador-geral da República de pedir à USP que submeta ao Conselho de Ética o professor Conrado Hübner Mendes e de abrir uma queixa-crime na Justiça Federal contra esse docente, pelo simples fato de ter sido por ele chamado de “poste” conhecido “pela submediocridade verbal e teatral (com) que floreia seu colaboracionismo”, não deve ser vista como um fato isolado. Nem, muito menos, como um caso inopinado de exorbitância. Também não deve ser encarada como uma simples – porém moralmente condenável – demonstração de aulicismo de quem adula um governo que, ao desprezar as liberdades públicas, fomenta a ignorância; de quem, ao cortejar seu principal dirigente para ascender ao Supremo ou ganhar mais um mandato à frente da Procuradoria-Geral da República, diminui-se a ponto de pedir a uma universidade internacionalmente respeitada que censure um seus de professores.

Como esse procurador chefia, justamente, o órgão encarregado pela Constituição de defender a ordem jurídica e o regime democrático, sua investida contra a liberdade de cátedra, opinião e expressão de um constitucionalista de uma das principais escolas de direito do país revela assim a importância e a atualidade das palavras de Przeworski. Atesta, desse modo, a regressão institucional que o país está sofrendo, com autocratas eleitos pela regra de maioria destruindo os órgãos de controle do regime democrático, ao entregá-los a carreiristas sem estatura.

José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito e presidente da Comissão de Ética da instituição.

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