Que o ano de 2020 foi atípico por conta da pandemia de covid-19, isso todos sabem. Mas o que ficou evidenciado com a recente divulgação dos dados assistenciais dos planos de saúde pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) foi o quanto a pandemia impactou esse setor no ano que passou.
O Mapa Assistencial da Saúde Suplementar é atualizado anualmente pela ANS a partir das informações de produção de serviços encaminhadas pelas próprias operadoras de planos de saúde. A nova edição reflete o ano incomum de 2020, que por conta das medidas para conter a disseminação do vírus – como o isolamento social e a suspensão de cirurgias e procedimentos eletivos – foi marcado por quedas históricas de consultas, exames, terapias e cirurgias. Isso gerou um lucro recorde ao setor, que teve aumento de receita, crescimento de beneficiários e diminuição acentuada das despesas médicas.
Em 2020, houve uma variação negativa na comparação com 2019 em todos os grupos de procedimentos realizados via planos de saúde, que são responsáveis pelo atendimento de 25% da população brasileira, ou 48 milhões de pessoas.
De acordo com o Mapa, as consultas médicas apresentaram uma redução de 25,1%, enquanto as internações hospitalares tiveram queda de 14,7%. As reduções no SUS (Sistema Único de Saúde) para consultas e internações foram de respectivamente 25% e 16%.
Também caíram significativamente os atendimentos com fisioterapeutas (-29%), fonoaudiólogos (-21,5%) e nutricionistas (-28,1%). As consultas e sessões com psicólogos tiveram queda menor (-7,9%) possivelmente devido ao impacto da pandemia na saúde mental da população durante a crise sanitária.
Da mesma forma, os exames para diagnóstico de câncer apresentaram quedas expressivas: -28,3% de mamografias (convencional e digital); -24,4% de exames de citopatologia cérvico-vaginal oncótica em mulheres de 25 a 59 anos (papanicolau); e -37,3% de exames de pesquisa de sangue oculto nas fezes em pacientes de 50 a 69 anos. Esses números geram preocupação pois comprometem a detecção precoce de neoplasias, que aumenta as chances de cura.
Ano atípico foi marcado por quedas históricas de consultas, exames, terapias e cirurgias. Isso gerou lucro recorde ao setor de saúde suplementar, que teve diminuição acentuada das despesas médicas
Em relação à utilização de serviços para enfrentamento à covid-19, o exame pesquisa por RT-PCR para Sars-CoV-2 respondeu por 85% do total de exames para detecção de vírus respiratórios.
Os números gerais apontam para um declínio de internações em patamares similares tanto no SUS (-16%) como na saúde suplementar (-14,7%). A queda geral de internações é atribuída pelos especialistas a dois fatores: restrições de acesso durante a pandemia (serviços que interromperam ou reduziram o atendimento eletivo de doenças não-covid) e o adiamento de cirurgias eletivas.
As internações cirúrgicas sofreram queda de 21,5%, enquanto as clínicas tiveram redução menor, de 6,7%, o que faz sentido, considerando que internações por covid-19 são consideradas, em geral, clínicas. Em relação aos regimes de internação, enquanto houve queda de 27,1% das internações em hospital-dia, geralmente associado a cirurgias simples, houve um aumento de 9,8% nas internações domiciliares, possivelmente em substituição à internação hospitalar para preservar os pacientes do contato com o vírus.
Como já era de se esperar, as internações obstétricas sofreram pouca alteração (-1,7%), dada a impossibilidade de adiamento dos partos. Já as internações pediátricas por doenças respiratórias (0 a 5 anos) caíram substancialmente em relação ao ano anterior (-48,2%), o que pode ser explicado pela suspensão da ida presencial a creches e escolas, preservando as crianças de infecções respiratórias comuns decorrentes do contato com outras crianças.
Para as doenças cardiovasculares, uma das principais causas de morte no Brasil, a redução geral de hospitalizações foi de 8,9%; e a realização de consultas com cardiologista caiu 22,6%. A falta de acompanhamento médico se refletiu no Mapa em um aumento nas internações específicas para infarto agudo do miocárdio (15,2%), insuficiência cardíaca congestiva (9,8%), e acidente vascular cerebral (12,8%). Segundo levantamento divulgado em 2020 pela Sociedade Brasileira de Cardiologia , houve um aumento de mais de 30% de mortes cardiovasculares em casa nos três primeiros meses da pandemia.
As internações por câncer reduziram 18,9%, o que inspira grande preocupação pois a queda deve estar associada à diminuição de exames e biópsias. A maior queda ocorreu nas internações para tratamento cirúrgico de câncer de próstata (-24,3%). No SUS, a redução de internações por câncer foi menor (-5%), mas também gera preocupação.
Os dados apresentados mostram como a população brasileira deixou de buscar atendimentos em saúde no último ano, seja pelo SUS ou utilizando um plano de saúde, o que, se por um lado ajudou a evitar infecções pelo novo coronavírus, por outro pode agravar as condições de saúde que requerem acompanhamento contínuo.
Com isso, fica evidente a importância do investimento na melhoria da gestão da saúde populacional, com foco na geração de valor para os usuários dos sistemas de saúde, seja ele público ou privado. A integração de ações de prevenção e promoção da saúde e a coordenação do cuidado com fortalecimento da atenção primária em saúde são estratégias importantes que devem sempre nortear as políticas públicas de saúde.
Os dados do Mapa Assistencial também corroboram o percentual negativo – inédito – definido pelo órgão regulador para o reajuste de planos de saúde individuais (-8,19%) em 2021. O índice reflete a queda das despesas assistenciais ocorrida no ano de 2020 em virtude da pandemia e resulta em redução na mensalidade dos planos de saúde. Essa é uma notícia boa e justa aos consumidores, que ao longo da pandemia demonstraram esforço em manter o pagamento de suas mensalidades, com medo de ficar sem atendimento bem no meio de uma crise sanitária.

Flavia Harumi Ramos Tanaka é e specialista em regulação de saúde suplementar; gerente de monitoramento assistencial da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar); e especialista em administração pública pela FGV-Rio (Fundação Getulio Vargas).