Otan e Ucrânia: a esfinge russa e a maldição da geografia

Ensaio

Otan e Ucrânia: a esfinge russa e a maldição da geografia
Foto: Kim Kyung-Hoon/Reuters - 26.jan.2022

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Bernardo Wahl G. de Araújo Jorge


12 de fevereiro de 2022

O espaço geográfico funciona como uma variável chave para entender o comportamento russo atual e histórico

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Na mitologia grega, a esfinge era um monstro fabuloso: possuía corpo, garras e cauda de leão, cabeça de mulher, asas de águia e unhas de harpia. Ela propunha enigmas aos andarilhos e devorava quem não conseguisse decifrá-los. É desta criatura a famosa máxima: “decifra-me ou te devoro”. Essa figura é interessante para ilustrar como o mundo ocidental percebe a Rússia.

Dando um pulo na história, Winston Churchill fez uma célebre observação em 1939: “Não posso prever aos senhores a ação da Rússia. É uma charada envolta em mistério, dentro de um enigma. Mas talvez haja uma chave: o interesse nacional russo”. Trata-se de uma definição que ainda hoje soa verdadeira.

No fim de 2021, Moscou apresentou aos EUA algumas demandas necessárias para evitar um conflito bélico na Ucrânia: a suspensão formal da expansão oriental da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o congelamento permanente na ampliação da infraestrutura castrense da aliança no antigo território soviético, o fim da assistência militar ocidental à Ucrânia e a proibição de mísseis de alcance intermediário na Europa. A mensagem era clara: se essas ameaças não pudessem ser tratadas diplomaticamente, o Kremlin recorreria ao uso da força.

A estrutura de segurança europeia, o futuro da Otan e o papel dos EUA no estabelecimento dos resultados de segurança estão todos em jogo. A Ucrânia está no centro da crise, entretanto Moscou tem um objetivo maior no horizonte: a revisão da ordem de segurança da Europa – desde o fim da Guerra Fria, a Rússia não pode dar as cartas nesse assunto, sendo apenas um tomador das regras estipuladas pelos EUA e a Otan. Ademais, Vladimir Putin opera a crise atual para conquistar duas metas principais: (1) avançar em busca da recuperação do controle da Ucrânia e (2) fragmentar e neutralizar a aliança da Otan.

Moscou atacará ou não a Ucrânia militarmente? O impasse diplomático e o posicionamento de tropas russas na fronteira ucraniana levam a crer que sim. Porém, segundo o clássico oriental Sun Tzu, “toda guerra é baseada na dissimulação”. Os líderes ocidentais têm dificuldade em decifrar os motivos de Putin, mas será que a Rússia é de fato um mistério?

Talvez não. Para entendê-la, basta olhar o mapa físico da Europa. A geografia é uma variável chave para entender o comportamento russo, atual e histórico, tendo o domínio geográfico o potencial de aprisionar os líderes políticos, restringindo suas escolhas e seus espaços de manobra, caracterizando a chamada “maldição” da geografia. Tais regras geográficas são especialmente válidas no país mais extenso do mundo.

A planície europeia tem sido um espaço convidativo para os invasores que atacaram a Rússia repetidas vezes ao longo da história. Nos últimos cerca de 500 anos, o território russo foi invadido diversas vezes pela sua fronteira oeste. Os poloneses cruzaram a planície europeia em 1605, levando à guerra polaco-moscovita, seguidos pelos suecos em 1707, na Grande Guerra do Norte. Depois, realizaram-se as investidas mais conhecidas: os franceses sob Napoleão em 1812 e os alemães nos anos de 1914 e 1941, nas duas guerras mundiais.

Isso moldou a percepção russa de ameaça à sua segurança, uma percepção que vê como perigo mais recente a Otan, que surgiu na Guerra Fria para conter os soviéticos na Europa. Mas, ao longo do tempo, tal aliança ocidental se expandiu, aproximando-se mais das fronteiras russas. Não há montanhas no leste da Ucrânia que possam servir como uma proteção natural para a Rússia. Para Putin, assim como para outros líderes russos antes dele, não haveria outra escolha a não ser tentar controlar as planícies a oeste do território russo.

A Ucrânia está no centro da crise, entretanto Moscou tem um objetivo maior no horizonte: a revisão da ordem de segurança da Europa

A origem russa pode ser estabelecida no século 9, sob a forma de uma federação livre de tribos eslavas orientais, nomeadas Rússia de Kiev, situadas no que hoje é a capital da Ucrânia e em outras cidades ao longo do rio Dniepre, localizado no atual território ucraniano.

Os mongóis, ampliando seu império, que foi um dos maiores da história, atacaram constantemente a partir dos flancos sul e leste a região onde estavam as tribos russas, acabando por invadir o local no século 13. A Rússia nascente então se mudou para Moscou, a nordeste. Este projeto russo, denominado Grande Principado de Moscou, não tinha proteção natural: montanhas e desertos eram inexistentes e havia poucos rios.

Toda a posterior expansão da Rússia, particularmente a partir de Ivan, o Terrível, no século 16, Pedro, o Grande e, depois, Catarina, a Grande, ambos no século 18, serviu para criar uma zona de amortecimento parcial e uma área interior – isto é, algum lugar para onde recorrer em caso de invasão.

Foi criado um enorme anel ao redor de Moscou: começando no Ártico, descendo pela região do Báltico, atravessando a Ucrânia, passando pelos Cárpatos, o Mar Negro, o Cáucaso e o Cáspio, voltando para os Urais, que se estendiam até o Círculo Ártico.

A política externa russa ao longo do tempo tem sido baseada em três fundamentos principais: (1) a procura de profundidade estratégica e amortecedores seguros contra ameaças externas; (2) o anseio de ser reconhecida como grande potência; e (3) o relacionamento difícil com o Ocidente, que mescla rivalidade e cooperação.

Após a dissolução soviética em 1991, os EUA e seus aliados ocidentais pararam de tratar a Rússia como uma grande potência, diferentemente do que havia acontecido antes com a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), que fora uma superpotência. E a expressão mais significativa dessa perda de reputação do Kremlin foi a expansão da Otan rumo ao leste europeu, região até então sob influência de Moscou. Não à toa que Putin disse, em um discurso de 2005, que o colapso da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século 20.

Desde que assumiu o poder nos anos 2000, Putin esteve decidido em restaurar o papel da Rússia como uma potência global após anos de rebaixamento pelos EUA e a Otan na década de 1990, particularmente com as etapas de expansão de tal aliança nos anos de 1999 e 2004. O presidente russo se considera vitorioso em devolver à Rússia seu papel estratégico como potência mundial. A prioridade de Putin ao reverter o declínio russo pós-URSS era impedir o avanço de potências estrangeiras na ex-região soviética.

A guerra da Geórgia em 2008 e a tomada da Crimeia em 2014 são eventos que têm a ver com uma regra histórica da segurança nacional russa: manter as suas zonas de influência e resguardar o que considera seu interesse nacional, aspectos que foram moldados pela experiência do país ter sido invadido no passado. O que Moscou busca são espaços entre ela e o possível inimigo. O Kremlin vê a Otan como a maior ameaça à segurança russa e não a quer em suas fronteiras.

Para a Rússia, por conta da planície europeia e da falta de montanhas no leste ucraniano, é necessária uma Ucrânia pró-Moscou ou neutra, funcionando como uma espécie de zona tampão entre o território russo e a Otan. No caso da diplomacia falhar na crise atual, existe a chance de uma operação militar. Lembrando o pensador ocidental Clausewitz: “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Não bastassem todos os outros desafios mundiais atualmente, um novo conflito armado pode estar se revelando no horizonte.

Bernardo Wahl G. de Araújo Jorge atua como analista independente, palestrante e consultor autônomo. É o professor responsável pela disciplina segurança e defesa da pós-graduação lato sensu Política e Relações Internacionais da FESPSP (Sociologia e Política – Escola de Humanidades). Também leciona no bacharelado em relações internacionais da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas).

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