Junho de 2013: uma jornada rumo ao esquisito

Ensaio

Junho de 2013: uma jornada rumo ao esquisito
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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André Sales


19 de junho de 2023

Grupos que explicam as escolhas políticas alheias com base na macroeconomia assumem que as ‘forças populares’ são facilmente seduzidas por líderes carismáticos

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Sou psicólogo e investigo os desdobramentos psico-políticos das jornadas de junho de 2013. Meu foco é o caráter colectividual (produzido no e pelo coletivo, mas sempre vivenciado e materializado pelas atividades de cada um de nós) da política. O desafio é explicar a intersecção entre ações instrumentais, orientadas por objetivos claros e definidos, e as expressivas, voltadas para o desenvolvimento emocional e crescimento pessoal, uma vez que essas andam mescladas no ativismo digital contemporâneo.

Esse tópico ainda é pouco compreendido por membros da intelectualidade política nacional. Durante décadas, líderes de esquerda acreditaram que incentivar a disciplina, a objetividade e a radicalidade retórica dos seus militantes era a maneira mais eficaz de engajar pessoas na política. Quando essa gramática se esvaziou, muitos se viram sem palavras para dizer o que se passava na política.

Neste ensaio, apresento resultados de minhas pesquisas recentes debatendo – e rebatendo – as análises sobre “a jornada do abismo” publicadas pela Fundação Perseu Abramo no começo do mês. Faço isso pinçando trechos da reportagem de capa da edição 99 da Revista Focus.

Assim como fizeram em agosto, setembro e outubro de 2013, parte da vanguarda militante insiste em culpar os “pseudos-progressistas”, os “inocentes úteis” e os “adeptos da ‘revolução 2.0’” pela quebra do monopólio da esquerda sindicalista e seus aliados sobre os protestos de ruas. Nas primeiras páginas da revista, a responsabilidade pelo início “de uma guerra híbrida que desencadearia num redesenho institucional e político brasileiro dali a apenas cinco anos” é creditada àqueles que estavam insatisfeitos sem motivo, uma vez que o “Brasil vinha se conduzindo em 2013 como uma nação em franca ascensão, com economia em alta, desemprego em baixa e muitas oportunidades para todos”.

Grupos que explicam as escolhas políticas alheias com base na macroeconomia, usam lentes de microscópio para avaliar o efeito do neoliberalismo global sobre as disputas eleitorais nacionais, e assumem que as “forças populares” são facilmente seduzidas por líderes carismáticos, vão mesmo chamar de “uma variedade estonteante de queixumes” as demandas trazidas para as ruas depois de 2013. Caso esses grupos e outros “herdeiros das tradições centenárias de lutas do povo brasileiro” percam espaço nas ruas, nas mentes e nos corações das pessoas graças a articulações em redes – remotas e presenciais – de uma gente esquisita, eles vão certamente abraçar o conforto trazido pela tese de que “aquele ensaio de protesto social, embora legítimo, [foi] sequestrado pela nova direita”.

Entre junho de 2023 e aquele em 2013, a democracia brasileira teve vertigens. Tanto que muitas e muitos passaram os últimos quatro anos à beira de ataques de nervos. De lá pra cá, estudantes secundaristas ensinaram universitários e sindicalistas a protestar ocupando prédios públicos. A militância de extrema direita mostrou que também pode tomar o Estado por vias eleitorais e fazer as políticas públicas funcionarem na direção e no sentido que a ela convém. Mandatos e mandatas ativistas experimentaram candidaturas coletivas usando ferramentas digitais e fizeram campanhas para mulheres, negros, e outros grupos minorizados, enquanto inventavam canais digitais para participação popular. Governadores desafiaram o caráter monárquico do presidencialismo à brasileira indo contra a medida provisória que impedia estados e municípios de tomar medidas necessárias para conter a disseminação da covid. Mesmo diante de tudo isso, no aniversário de 10 anos das Jornadas de Junho, os editores da Fundação Perseu Abramo, entendem que a prioridade deve ser: “deplorar os acontecimentos de junho de 2013 (…) para que as forças populares não voltem a cair no ‘canto da sereia’ de aprendizes de feiticeiro da política”.

Entre junho de 2023 e aquele em 2013, a democracia brasileira teve vertigens. Tanto que muitas e muitos passaram os últimos quatro anos à beira de ataques de nervos

Ao contrário do que acusam os editores da revista Focus, as associações de mulheres, os secundaristas, os grupos ativistas e as outras tantas formas de organização política surgidas depois de junho não sofrem de “esquerdismo” – a tal doença infantil do comunismo inventada por Lenin para caracterizar a insurgência de seus aliados políticos contra o horizonte de futuro e as formas de luta traçadas pela vanguardas proletárias já ideologicamente reformadas. Parte desses novos atores que entram em cena na margem esquerda do rio estão estrategicamente mais interessados em aumentar seu poder para testar modos não usuais de fazer política do que ganhar poder sobre as instituições que governam a vida social. E claro, essa opção vem acompanhada de pacotes de perdas e ganhos – os quais eu investigo há 8 anos.

Coletivos feministas, negros, quilombolas, indígenas, e tantos outros surgidos no bojo dos transbordamentos daquele junho têm sido fundamentais na oposição ao “extremismo nacionalista ultraconservador”. Os sujeitos engajados nesses arranjos políticos não são identitários egocêntricos, ou negam a validade da arena política governamental. Tomando os valores éticos com que governam a própria existência como uma arena de batalha crucial para transformação das normas que organizam nossa vida em comum, eles têm testado e experienciado formas cada vez mais pessoalizadas de fazer política.

Tendo vivido na pele os efeitos colaterais indesejáveis do nosso presidencialismo de coalizão, esses grupos estão avisados sobre os limites das mudanças capitaneadas pelo Estado. Por isso, eles tendem a manter uma separação tática dos governos e da política institucional como ela é, enquanto apostam nas ferramentas técnicas, organizativas e relacionais disponíveis na contemporaneidade para aumentar simultaneamente sua autonomia individual e coletiva.

Brasileiros jovens – estou aqui pensando em pessoas com até 30 e poucos anos – seguirão contrariando tradições históricas de organização em partidos, sindicatos e diretórios acadêmicos. Parte deles faz isso enquanto expande o compromisso das gerações anteriores com a diminuição das iniquidades no país para além da esfera econômica. Esses ativistas são fruto de um momento histórico onde as fronteiras entre tempo de trabalho e de não trabalho, espaço público e privado, atividades pessoais e coletivas andam borradas. O horizonte de Estado de bem-estar social provedor, crescimento e desenvolvimento que informava os projetos de futuro nos anos 80, nunca esteve disponível para essas pessoas. Estados cada vez mais vigilantes, precariedade econômica e uma catástrofe climática orientam as análises de conjuntura e estratégias políticas desses sujeitos.

Essas reflexões acima seriam impossíveis sem o suporte contínuo oferecido a mim pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo através dos processos 2021/08714-9, 2020/05067-0, 2018/01064-6, 2017/00664-7, 2015/26241-0.

De fato, o “Brasil nunca mais foi o mesmo desde junho de 2013”. E sobre isso, a ressalva do Belchior segue valendo, quem ama demais o passado não vê que o novo sempre vem. O país não foi mais o mesmo e nem poderia ser, pois aqueles que podem estar “firmes na defesa da democracia e da inclusão cidadã do nosso povo” mudaram e são, agora, esquisitos.

André Sales é doutor em psicologia. Pesquisador FAPESP associado ao PPG de psicologia da PUC/SP e pesquisador visitante na CUNY em Nova Iorque e na York University, em Toronto. Autor de “Militancy and Prefigurative Activism: the Case of Brazil” (Springer, 2023); “Militância e ativismo: cinco ensaios sobre ação coletiva e subjetividade” (Editora Unesp, 2021); “Militância e ativismo depois de Junho de 2013: e daí?” (Comprehensive Peer, 2020). Editor da série Psicologia Política Pop.

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