No Brasil, em 2022, 33,1 milhões de pessoas no Brasil estavam em situação de insegurança alimentar e nutricional grave. Em 2023 esse número caiu para 8,7 milhões, de acordo com o relatório anual “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo” (SOFI), produzido por um conjunto de diversas agências da ONU.
Esse é um avanço que deve ser valorizado e levado adiante. Ele decorre de um conjunto de investimentos em políticas públicas de proteção social e transformação do sistemas alimentares, mas precisamos olhar de forma mais cuidadosa para as desigualdades no interior dessa trajetória, pois não estamos avançando de maneira equânime, principalmente quando trazemos recortes de raça e cor. Dados produzidos pela segunda rodada de indicadores do Observatório Brasileiro das Desigualdades mostram que o avanço que tivemos nesse indicador foi menor entre a população negra. Homens e mulheres negros estão em situação mais vulnerável às múltiplas causas da fome e da pobreza, como menos acesso à renda, a alimentos saudáveis e outras condições ligadas ao direito humano à alimentação adequada, garantido na Constituição Federal Brasileira.
Homens e mulheres negros estão em situação mais vulnerável às múltiplas causas da fome e da pobreza
Entre as várias medidas recentes para enfrentamento da fome estão o fortalecimento dos programas de transferência de renda, a promoção da alimentação escolar de qualidade, o apoio à agricultura familiar e agroecológica e a isenção da cesta básica com alimentos saudáveis. Todas elas – quando efetivas – contribuem para a segurança alimentar da população brasileira como um todo. Mas também precisamos de medidas específicas para aqueles em situação mais vulnerável. Um bom exemplo é o programa para o combate à fome com foco nas mulheres negras, anunciado recentemente pelo governo federal.
O programa atuará sobre o Suas (Sistema Único de Assistência Social) e o Sisan (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) para que produzam mais e melhores dados sobre a população negra, com aprimoramento dos cadastros de populações tradicionais e específicas, para que se possa impactar positivamente as pessoas vivendo em favelas, periferias, comunidades quilombolas e similares.
Os investimentos federais anunciados pelo programa também serão direcionados às cozinhas solidárias e aos projetos liderados por mulheres negras. As cozinhas solidárias são uma tecnologia social que se espalhou por diversos territórios brasileiros e têm grande impacto em territórios onde há maior insegurança alimentar, com a produção de refeições com regularidade e qualidade, e não raro são centros de engajamento comunitário, acolhimento e pertencimento. Desde 2023 se tornaram política pública e se somam a uma rede de iniciativas de promoção da segurança alimentar e nutricional como bancos de alimentos, restaurantes populares e hortas comunitárias, todos com capacidade de promover uma alimentação suficiente e saudável para as pessoas. É preciso que a sociedade brasileira como um todo apoie essas medidas para que elas se sustentem e se expandam nos próximos anos.
Precisamos também de avanços na prevenção e saúde em questões ligadas a hábitos alimentares. Uma preocupação recorrente é com produtos alimentícios ultraprocessados. Pesquisas indicam que o consumo de tais produtos cresce em todas as classes, mas é maior entre as pessoas mais pobres. No período entre 2002 e 2018, a participação de ultraprocessados em nossa dieta foi de 12,6% para 18,4%. Devido ao baixo custo, a durabilidade na prateleira e a forma rápida com que são consumidos, os ultraprocessados são muito populares, mas têm uma consequência nefasta para a saúde dos indivíduos e para o sistema público de saúde. Do outro lado da moeda está a dificuldade de acesso a alimentos saudáveis. O quadro é tão grave que levou o médico afro-americano Llaila Afrika a cunhar o termo nutricídio.
O Observatório Brasileiro das Desigualdades também traz dados alarmantes quanto à situação de desnutrição entre crianças indígenas. No início de 2023, quando veio à tona a crise humanitária no território Yanomami, foi verificado que crianças e idosos estavam em estado grave de saúde e desnutrição. Mas, anteriormente,os Mapas da Insegurança Alimentar e Nutricional de 2016 e de 2018 já mostravam números preocupantes de insegurança alimentar entre os povos indígenas e as comunidades tradicionais.
A perspectiva para essa questão é extremamente preocupante, devido às atuais e gravíssimas ameaças aos territórios indígenas: a exploração predatória de seus recursos naturais — como é o caso da mineração, a delonga na conclusão da demarcação já em curso de terras indígenas e a possibilidade de instituição do marco temporal, somados ainda às mudanças no clima
Por conta dos desmembramentos e as dimensões da desigualdade no Brasil, é que diversas organizações da sociedade civil se uniram em prol de um Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades. A iniciativa reúne movimentos sociais, associações de municípios, centrais sindicais e entidades de classe, com o objetivo de transformar o combate às diversas formas de desigualdade em uma prioridade nacional.
Uma das frentes de atuação do Pacto é exatamente o Observatório brasileiro das desigualdades acima citado, que analisa 42 indicadores sociais, destacando transversalmente raça/cor, gênero, renda e território. O relatório de 2024 aponta para a persistência de desigualdades em variados indicadores econômicos e sociais.
Prestar atenção nesses dados, analisando e apontando caminhos é nossa tarefa. Precisamos urgentemente atuar sobre as diferenças abissais de acesso a direitos que assolam nosso país e comprometem a efetividade e sustentabilidade de nossa democracia .
Mariana Pedron Macário é líder de Políticas Públicas da Ação da Cidadania. Mestre em Filosofia do Direito pela USP. Especialista em relações raciais. Co-facilitadora do Grupo de Trabalho de Sistemas Alimentares, Fome e Pobreza do C20, grupo de engajamento da Sociedade Civil no G20