Entrevista

‘A produção do caos como estratégia política é real’

Malu Delgado

08 de outubro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h45)

Pesquisadora de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ivana Bentes fala ao ‘Nexo’ sobre o clima de ‘tudo ou nada’ na comunicação digital das campanhas presidenciais no segundo turno 

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FOTO: REPRODUÇÃO

Montagem de memes sobre Jair Bolsonaro publicados nas redes sociais

Montagem de memes sobre Jair Bolsonaro publicados nas redes sociais

Há limites éticos que não deveriam ser ultrapassados na guerra de comunicação à qual normalmente os eleitores assistem numa campanha política, afirma ao Nexo Ivana Bentes, pesquisadora do programa de pós-graduação de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Doutora em comunicação, ensaísta e professora, Bentes enxerga uma “inversão na linguagem” no segundo turno da disputa presidencial, em que Jair Bolsonaro tenta se apresentar, na propaganda eleitoral, “como alguém razoável e sóbrio”, enquanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva partiu para uma postura incisiva, aos moldes bolsonaristas, explorando as falas absurdas de Bolsonaro. É o caso, por exemplo, de trecho da entrevista que o presidente concedeu em 2016 ao jornal americano The New York Times em que conta ao repórter sobre uma experiência na comunidade indígena em Sururucu, em Vista Alegre (RO), em que quase comeu carne humana. Ele afirma que queria “ver o índio sendo cozinhado” , onde se conclui que “Bolsonaro comeria carne humana”. “Não estão mentindo, mas mimetizando a guerra de reputações que torna Bolsonaro alguém monstruoso”, disse Bentes.

Após a eleição de 2018, o campo da esquerda brasileira, as instituições e a sociedade se mostram mais preparadas, na opinião da pesquisadora, para enfrentar a “tempestade semiótica” e a guerra da desinformação numa disputa. Ela concorda que “é preciso desconstruir mentiras morais com a mesma linguagem memética e popular fartamente usada pela extrema direita”, mas faz um alerta: essa lógica de guerra pode aprofundar a desagregação social do país.

Num debate tão complexo, Ivana Bentes sustenta que não se trata de moral ou culpa de partidos e marqueteiros. É o modelo de negócios da internet, enfatiza, que monetiza as fake news, os memes, o sensacionalismo e a fofoca. “Em uma eleição como essa, em que a sociedade tem que decidir entre dois projetos antagônicos e com consequências muito distintas para a sociedade, os limites da ética e do razoável são rompidos com mais facilidade. Esse clima de tudo ou nada é real.”

De 2018 a 2022, a esquerda conseguiu compreender melhor a dinâmica usada pela extrema direita nas redes e definir ferramentas para essa batalha virtual?

IVANA BENTES Em 2018, a sociedade brasileira não tinha anticorpos para o nível de manipulação, desinformação, e nem identificava a linguagem das fake news que mimetiza a linguagem jornalística. Depois do choque e do impacto que foi a eleição de Jair Bolsonaro, um presidente-meme, que fala e atua de forma midiática e memética, a esquerda, as mídias tradicionais e as agências de checagem de fato passaram a fazer um importante trabalho de formação para as mídias e pelas mídias.

As esquerdas e o campo democrático também entenderam que a guerrilha midiática, a guerra de memes, é estratégica, não é um campo “menor”. A disputa política tem se dado nessas redes e canais, nos grupos de família no WhatsApp, nos canais com números gigantescos de seguidores no Youtube, nos perfis de celebridades e nos de fofoca, nos perfis de influenciadores no Instagram que vocalizam valores e crenças dos mais diversos.

Ou seja, a política de base territorial, presencial (de grupos evangélicos, de católicos, de moradores de bairros, etc) chegou nas redes. Eu vejo um perfil no Facebook e no Instagram de moradores do bairro de Copacabana que virou plataforma do bolsonarismo e vejo também canais do campo das esquerdas, de humor, de memes, que se politizaram e tomaram posição. Em 2022 vejo que as instituições, as esquerdas e uma parte da sociedade civil se prepararam para enfrentar essa tempestade semiótica, esse “desarranjo” que é a desinformação em tempos de eleições.

O segundo turno começou com uma guerra santa e a viralização de um vídeo sobre maçonaria, que parece ter desestruturado a bolha bolsonarista. Até que ponto esse vale-tudo da comunicação é legítimo numa campanha?

IVANA BENTESExistem limites éticos que não deveriam ser ultrapassados: o uso de fake news, acusações infantilizadas de “satanismo” seja à direita ou à esquerda, o “fofocariado” inconsequente que constrói e embarca em campanhas desinformativas que viralizam e furam as bolhas, a destruição deliberada de reputações a partir de mentiras, etc. Só que a questão, ao meu ver, deixou de ser “moral”, ou “culpa” de partidos e marqueteiros. Esse é simplesmente o modelo de monetização das redes.

O modelo de negócios da internet hoje monetiza as fake news, a fofoca, o “choquei”, o sensacionalismo. São fenômenos que já existiam, mas que foram potencializados nas redes sociais a partir do momento em que temos os algoritmos que premiam e entregam, prioritariamente, os discursos radicalizados, discursos de ódio.

Por outro lado, em uma eleição como essa, em que a sociedade tem que decidir entre dois projetos antagônicos e com consequências muito distintas, os limites da ética e do razoável são rompidos com mais facilidade. Esse clima de “tudo ou nada” é real.

A desinformação é uma epidemia global, fruto do modelo de negócios que se vale dessa necessidade de reconfiguração dos poderes. Para a extrema direita e para o capitalismo de plataforma, que toma decisões por algoritmos, esse caos e desordem informacionais e institucionais são um cenário de oportunidades.

A produção do caos e da desinformação como estratégia política, como nos mostra Giuliano Empoli em “Os engenheiros do caos” , é real. O subtítulo desse livro resume bem a questão: “como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições”. Ou seja, são operações que favorecem tecnologicamente uma desconfiguração de mundos e sua reconfiguração. É um sistema disruptivo nesse sentido.

A entrada de influencers na campanha de Lula e a adesão de figuras como André Janones têm causado certo desconforto à esquerda, que dizia não lutar com as mesmas armas da extrema direita. Como enxerga esse paradoxo?

IVANA BENTESNão vejo como um paradoxo. Existem múltiplas linguagens para se falar para grupos com interesses diversos. O Janones, ao incorporar esse personagem do “aloprado do PT”, cumpre uma função. Obviamente que não dá para o Janones virar o padre Kelmon das esquerdas, colocado ali para dizer não importa o quê, desde que detone o adversário. O Padre Kelmon, para mim, é o modelo do fim e do fracasso da política. É o troll, o desestabilizador, o bufão, o “Bolsonaro do Bolsonaro”. Achávamos que o Bolsonaro era o limite, e então aparece essa máquina de fakes e memes que é o padre Kelmon, orientado pela campanha bolsonarista, para retomar o pior do bolsonarismo de 2018: a destruição pura e simples de um campo, com mentiras e fatos delirantes. Mas essa estratégia está sendo requentada, sem o mesmo impacto de 2018.

Estamos vendo uma inversão na linguagem: Bolsonaro se apresenta como alguém “razoável” e “sóbrio” na propaganda eleitoral para o segundo turno e a campanha de Lula cerra fogo, nos moldes bolsonaristas, nas suas frases absurdas e morais como essa do “eu queria ver o índio sendo cozinhado”, onde se conclui que “Bolsonaro comeria carne humana”. Não estão mentindo, mas mimetizando a guerra de reputações que torna Bolsonaro alguém “monstruoso”.

As pautas morais são a avenida mais larga para o embate da desinformação numa campanha? Como isso pode ameaçar de forma decisiva o debate público nas democracias?

IVANA BENTESAs pautas morais têm que ser enfrentadas não apenas em um cenário eleitoral, mas pela sociedade; não como campo de antagonismos e polarização, mas como o que são: campos de disputa de valores com consequências na sociedade.

O fato de alguém se achar superior por ser homem, branco, heterossexual ou o que for, produz violência, produz sofrimento, produz assujeitamento. Os efeitos das pautas morais têm que ser encarados pelo que são: escolhas políticas e éticas. Acho um erro subestimar as pautas morais. Elas são tão importantes quanto as pautas econômicas e outras.

Mas sem dúvida Bolsonaro leva vantagem nesse campo, porque simplesmente pode dizer que “Lula vai fechar as igrejas”, que as crianças vão ter aula de sexo na escola, e todas as mentiras que produzem pânico moral. Concordo que é importante para as esquerdas falar da fila do osso, do desemprego, do preço da gasolina, dos mortos na pandemia, mas é preciso desconstruir as mentiras morais utilizando a mesma linguagem memética e popular. Gostei muito de todos os memes que mostram cenas bíblicas clássicas montadas com as frases pouco cristãs de Bolsonaro.

A antropóloga Letícia Cesarino afirmou recentemente em entrevista que o bolsonarismo é um estado de exceção, sem limites e sem regras, e que por isso restou à esquerda uma lógica de guerra. Concorda com essa análise?

IVANA BENTESConcordo em parte, porque o estado de exceção e a lógica de guerra, de produção do caos e das ameaças constantes, é um fator de desagregação social, é o fim da cola social, é um rebaixamento do horizonte coletivo. Temos que sair dessa lógica, pois dentro dela nós já perdemos.

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