Álbum foi o último a ser gravado pelos
Beatles, marcando o fim da
trajetória do quarteto de Liverpool. Conheça as histórias
por trás das canções da obra que
traz capa icônica e experimentação musical
Em 26 de setembro de 1969, os Beatles
lançaram “Abbey Road”. O álbum,
que traz a icônica capa da banda atravessando a rua que dá
título ao disco, foi o último
gravado pelo quarteto de Liverpool antes da separação
oficial do grupo no ano seguinte.
“Ninguém sabia ao certo que aquele seria
o último álbum, mas todo
mundo sentia que seria”, disse o produtor musical da banda,
George Martin, no documentário
“Anthology”, de 1995.
“Abbey Road” tem 17 faixas e dura 47
minutos e 23 segundos. Com um
tom mais positivo do que os discos anteriores, como “The
Beatles” (o
“Álbum Branco”) e “Get Back” (gravado antes de
“Abbey Road”, mas lançado
posteriormente com o título “Let it Be”), John Lennon, Paul
McCartney, George Harrison e
Ringo Starr despediram-se do público falando de amor.
“E, no final, o amor que você recebe é
igual ao amor que você dá”,
diz a letra de “The End”, canção que encerra um medley de
oito músicas presente no final
do disco.
Ao todo, os Beatles lançaram 13 álbuns de
estúdio. No lançamento de
“Abbey Road”, os integrantes da banda tinham 26 e 28 anos,
com George Harrison e Paul
McCartney sendo os mais novos.
A produção de ‘Abbey Road’
As
sessões de gravação de “Abbey Road” começaram em
abril de 1969, em Londres, no
estúdios da gravadora EMI. A primeira a ser gravada foi “I
Want You (She’s so Heavy)”,
sexta canção do álbum.
Músicas como “Mean Mr. Mustard” e
“Polythene Pam” já tinham sido
escritas anteriormente, em 1968, durante uma viagem de John
Lennon à Índia. “Here Comes
the Sun”, “Come Together” e “The End” eram algumas das
canções que eram completamente
inéditas no início das gravações.
“Apesar de tudo, os Beatles realmente
conseguiam tocar juntos quando
as coisas não estavam tensas. Se eu começasse algo, Ringo
sabia para onde ir. Desse jeito.
Nós tocamos juntos por tanto tempo que tudo se encaixava. É
isso o que eu sinto falta,
poder só fazer um certo som e todos saberem para onde ir”
A foto que ilustra a capa de “Abbey Road”
se tornou tão icônica
quanto o próprio álbum.
Iain Macmillan, amigo pessoal de John
Lennon e de sua esposa Yoko
Ono, foi o fotógrafo responsável pela imagem, que foi
produzida em 8 de agosto de 1969. A
ideia da capa trazer a banda atravessando a rua Abbey partiu
de Paul McCartney, que
esboçou algumas das ideias em um pedaço de papel.
Naquela manhã, um policial londrino
interrompeu o tráfego de carros
para a produção da foto. Ao todo, Macmillan tirou seis fotos
diferentes do grupo
atravessando a rua. A quinta acabou sendo a escolhida para a
capa do disco.
As cinco fotos não escolhidas da sessão
A faixa de pedestres de Abbey Road se
tornou um dos pontos turísticos
mais populares do mundo. Os estúdios da EMI foram renomeadas
como estúdios Abbey Road em
1970. Foi lá que os Beatles gravaram todos os seus discos.
Uma câmera, acessível ao
público 24 horas por dia, mostra o movimento
no local ao vivo.
As inspirações por trás
de cada faixa
Em 2013, os historiadores franceses
Philippe Margotin e Jean-Michel
Guesdon publicaram o livro “All the Songs: The Story Behind
Every Beatles Release” (Todas
as Músicas: A História por Trás de Todos os Lançamentos dos
Beatles, em tradução livre).
Na obra, eles contam bastidores de todas as canções da
banda.
A letra de “Come Together”, canção que
abre “Abbey Road”, foi escrita
por John Lennon.
Em 1969, o psicólogo americano Timothy
Leary, um dos maiores
defensores do LSD e ícone da cultura hippie, começou a
articular uma campanha para
disputar o governo da Califórnia, em uma eleição contra o
então governador Ronald Reagan.
O slogan de Leary era “Come together,
join the party” (Se aproxime,
junte-se ao partido, em tradução livre). Em 30 de maio
daquele ano, Leary compareceu ao
protesto pacífico que John Lennon e Yoko Ono realizaram em
um hotel de Montréal, no
Canadá.
O psicólogo pediu ao Beatle que
escrevesse uma música para sua
campanha eleitoral, o que foi aceito pelo compositor.
Lennon, porém, não se sentia
inspirado e, depois de algumas tentativas, fez uma letra que
não apresentava muita conexão
com a ideia original de Leary.
Quando o pré-candidato foi preso por
porte de maconha, sua possível
candidatura foi por água abaixo. Lennon acabou oferecendo a
música que tinha escrito para
os Beatles e, após alguns ajustes feitos pelos outros
membros da banda, o resultado foi
“Come Together”.
Em entrevista à revista Rolling Stone em
outubro daquele ano, George
Harrison afirmou que “Come Together” era uma das melhores
músicas já produzidas pela
banda, elogiando, principalmente, a performance do baterista
Ringo Starr.
“Something” foi composta por George
Harrison em 1968, durante a
produção de “The Beatles” (o
“Álbum Branco”).
Harrison não tinha os Beatles em mente
para a gravação da canção. O
guitarrista queria que a música fosse interpretada por Ray
Charles – algo que
veio a acontecer em 1971.
O primeiro verso da letra, “something in
the way she moves” (algo no
jeito que ela anda, em tradução livre) veio da música “Something
in the Way She Moves”,
de James Taylor.
No livro “Wonderful Today” (Maravilhosa
hoje, em livre tradução),
Pattie Boyd, ex-esposa de Harrison, afirmou que a música foi
escrita para ela. O
guitarrista nunca confirmou ou negou a história.
Geoff Emerick, engenheiro de som da
banda, afirmou no livro “Here,
there and everywhere” (Aqui, ali e em todo lugar,
numa tradução livre) que
“Something” era a melhor canção do disco na visão de John
Lennon.
‘Maxwell's Silver Hammer’
Paul McCartney foi o responsável pela
terceira faixa de “Abbey Road”.
À época, o músico estava lendo a obra do romancista francês
Alfred Jarry.
Em sua obra mais famosa, “Ubu Rei”, Jarry
cria o conceito da
patafísica, a “ciência das soluções imaginárias”, que
trabalha para desconstruir a
realidade de maneira cômica.
Inspirado pelo autor, McCartney compôs
“Maxwell’s Silver Hammer”. O
músico diz que a música fala sobre a ocorrência de problemas
inesperados em um cenário
onde tudo está caminhando bem.
No livro “Here, there and everywhere”,
Emerick conta que Lennon
detestou a canção, classificando-a como “uma das músicas de
vovó do Paul”.
Paul McCartney escreveu “Oh! Darling”
como uma homenagem ao rock dos
anos 1950. A primeira versão da música foi composta com o
título provisório de “Oh!
Darling (I’ll Never Do You No Harm”) durante a gravação de
“Let it Be”.
Foram necessárias 26 tomadas para se
conseguir a melhor versão de
“Oh! Darling”. McCartney, que assina os vocais da canção,
chegava ao estúdio horas antes
dos colegas de banda para aquecer sua voz, em busca de uma
sonoridade “rouca” para a
música.
Composta por Ringo Starr em 1968,
“Octopus’s Garden” surgiu em uma
viagem do baterista dos Beatles para a região de Sardenha,
na Itália.
Na viagem, Ringo acabou experimentando um
prato feito à base de
polvo, algo que ele nunca tinha comido. Conversando com o
chef, o baterista aprendeu que
um dos hábitos do polvo é a construção de um pequeno
“jardim” feito com objetos
encontrados no fundo do mar.
De volta das férias, o músico ofereceu
“Octopus’s Garden” para os
Beatles, na esperança – que acabou frustrada – de que a
canção integrasse o “Álbum
Branco”.
‘I Want You (She’s so Heavy)’
A letra da música é creditada a John
Lennon. Em entrevista ao
jornalista David Sheff em agosto de 1980, Lennon revelou que
“I Want You (She’s so Heavy)”
é
dedicada a
Yoko Ono.
Lennon queria um som volumoso e encorpado
para a música. Isso foi
obtido a partir da execução em uníssono do arranjo de
guitarra da faixa, feita por John e
George. A ideia era que o som de “I Want You (She’s so
Heavy)” fosse crescendo mais e
mais, progressivamente.
Foram necessárias 35 tomadas para se
obter o resultado esperado pela
banda.
O final de 1968 e o começo de 1969 foram
períodos tensos para os
Beatles, com as inúmeras brigas durante a gravação de “Let
it Be”, além de uma série de
questões burocráticas que o grupo precisou resolver após a
morte do empresário Brian
Epstein em 1967.
Composta por George Harrison, “Here Comes
the Sun” surgiu como uma
tentativa de aliviar essa tensão. A canção surgiu
espontaneamente durante uma visita de
Harrison ao músico Eric Clapton.
“Nós estávamos sentados em um campo no
fundo do jardim. Estávamos com
os violões, somente brincando, e ele começou a cantar ‘it’s
been a long cold lonely
winter’ e foi lapidando aquilo até a hora do almoço”, contou
Clapton.
“Because” foi composta por John Lennon.
A inspiração para a canção veio quando o
músico escutou Yoko Ono
tocando “Sonata ao Luar”,
de Beethoven.
Lennon pediu para Yoko tocar a música do
compositor ao contrário e
acabou tendo a ideia para a melodia e a harmonia de
“Because”.
Na visão de Harrison, “Because” era a
melhor música de “Abbey Road”
por conta do coro feito por ele, McCartney e Lennon durante
boa parte da faixa.
Com apenas oito versos, a letra de
“Because” fala sobre o amor, sobre
o mundo, sobre o céu e sobre o vento. Por conta dos temas da
canção, Emerick buscou manter
a “pureza” do som, algo feito a partir da ausência de
compressores sonoros ou qualquer
outro tipo de filtro.
‘You Never Give Me Your Money’
A letra de “You Never Give Me Your Money”
foi composta por Paul
McCartney em 1968. A canção foi inspirada pelos problemas
administrativos que assolavam os
Beatles após a morte do empresário Brian Epstein em 1967.
Para a musicalidade da faixa, McCartney
se inspirou em duas músicas:
“Happiness is a Warm Gun”, assinada por Lennon no “Álbum
Branco” e “A Quick One While He’s
Away”, lançada pela banda The Who em 1966 no álbum “A Quick
One”.
A faixa começa com um instrumental leve,
passa pelo blues e culmina
em um rock psicodélico com som mais pesado.
Creditada à dupla Lennon-McCartney, “Sun
King” teve letra composta
por Lennon.
O músico afirmou que a canção veio à sua
mente durante um sonho, mas,
segundo Margotin e Guesdon, a inspiração provavelmente veio
da biografia do rei francês
Luís 14, escrita por Nancy Mitford em 1966. O livro foi lido
por Lennon.
Musicalmente, ele se inspirou em
“Albatross”, do Fleetwood Mac. Na
entrevista com David Sheff, Lennon disse que a letra não
significa nada e que era apenas
“um pedaço de lixo que ele tinha em mãos”.
Na gravação da música, os Beatles
começaram a brincar com frases em
outros idiomas, gerando o resultado final de “Sun King”, que
tem versos em inglês,
italiano e espanhol.
‘Mean Mr. Mustard’
e ‘Polythene Pam’
Escrita por Lennon, “Mean Mr. Mustard”
tinha sido composta em 1968,
originalmente como parte do “Álbum Branco”.
“Mean Mr. Mustard” fala sobre um homem
cruel que mora em um parque.
Na entrevista a David Sheff, Lennon disse que a inspiração
veio após ler uma notícia que
falava sobre um homem que escondia notas de dinheiro em seu
corpo. Lennon não entrou em
detalhes para explicar a relação entre as duas coisas.
Na canção é dito que o sr. Mustard tem
uma irmã, Pam, que é a
protagonista da faixa seguinte, “Polythene Pam”.
“Polythene Pam” foi inspirada por dois
episódios da vida de Lennon: o
primeiro envolve Pat Hodgett, uma fã que acompanhou os
Beatles desde os primórdios da
banda e que tinha o estranho hábito de comer plástico, dando
a ela o apelido de “Polythene
Pat” (a Pat de Polietileno, em livre tradução).
O segundo encontro aconteceu em 1963,
quando Lennon foi até o
apartamento do poeta inglês Royston Ellis. No episódio, a
namorada de Ellis se vestiu com
uma roupa de polietileno para tentar seduzir Lennon. A
mistura dessas duas figuras se
tornou a “Polythene Pam” da canção.
‘She Came in Through
the Bathroom Window’
A inspiração para “She Came in Through
the Bathroom Window” surgiu
para Paul McCartney em maio de 1968.
Diane Ashley, uma grande fã dos Beatles,
invadiu a casa de McCartney
pela janela do banheiro do músico. Na ocasião, Ashley roubou
alguns pertences do beatle.
Foram necessárias 40 tomadas para se
obter o resultado de “She Came
in Through the Bathroom Window”.
‘Golden Slumbers’,
‘Carry that Weight’ e ‘The End’
A letra de “Golden Slumbers” foi escrita
por McCartney a partir da canção
de ninar de mesmo nome, escrita pelo autor britânico
Thomas Dekker em 1603.
“Carry that Weight”, que é emendada logo
ao final de “Golden
Slumbers” traz a melodia de “You Never Give Me Your Money”,
emendada com um coro feito
pelo quarteto. A letra da canção também foi inspirada pelos
problemas financeiros da
banda.
Por fim, “The End” marca a despedida dos
Beatles, com seu último
verso: “E no final, o amor que você recebe é igual ao amor
que você dá”. É em “The End”
que Ringo Starr tem seu primeiro e único solo estendido de
bateria junto da banda, e
também a primeira e única vez que Lennon, McCartney e
Harrison tocaram um solo de guitarra
juntos.
A faixa “escondida” de “Abbey Road”
começa após um silêncio de 14
segundos depois do final de “The End”.
Com apenas 23 segundos, “Her Majesty”
originalmente estaria entre
“Mean Mr. Mustard” e “Polythene Pam”, mas a ideia foi
descartada depois de o grupo não
gostar do resultado final.
O quarteto de Liverpool queria
simplesmente ignorar a música, porém,
a política da gravadora não permitia o descarte de materiais
já gravados. A solução
encontrada foi colocar “Her Majesty” no final do disco,
escondida após “The End”.
O legado, segundo
este músico
Para Iannicelli, “Abbey Road” está à
altura de “Sgt. Pepper’s Lonely
Hearts Club Band”, disco lançado pelo grupo em 1967 que
foi considerado revolucionário por trazer músicas
que, se unidas, formavam um
conceito único.
“Na minha opinião, ‘Abbey Road’ foi
musicalmente tão emblemático
quanto o ‘Peppers’. A diferença é que o ‘Peppers’ foi
considerado o disco conceitual do
século”, afirmou o músico ao Nexo.
“O ‘Abbey Road’ foi o início de uma nova
era na música pop,
principalmente no rock. Ele deu a direção do que estaria por
vir”
— Beto Iannicelli
Maestro e professor
de música
Na visão de Iannicelli, “Abbey Road” é um
disco perfeito em todos os
sentidos. Segundo ele, “You Never Give Me Your Money” é o
ápice composicional dos Beatles
por sintetizar, em seus quatro minutos, várias estéticas do
rock, indo do blues ao rock
psicodélico.
O maestro vê “Abbey Road” como o disco
que inspirou a musicalidade
dos anos 1970, citando exemplos como as bandas Pink Floyd,
Black Sabbath e Queen como
grupos que se seguiram o trabalho dos Beatles em sua reta
final.
Iannicelli também diz que o grande legado
do álbum para outras
bandas, mesmo aquelas que não se inspiraram diretamente nos
Beatles, é o fato de que o
disco deu aos músicos a liberdade de se experimentar, de
testar outras sonoridades e
possibilidades musicais.
Produzido por Cesar Gaglioni
Arte e Desenvolvimento por Thiago
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