especial-decada

3.
Identidades:
autoafirmação
e disputa

Em 18 de Dez de 2019

Onde estávamos em 2010

“Uma minoria excluída só é livre quando todas as minorias excluídas forem livres”, afirmou a filósofa americana Judith Butler em uma fala de 2010 numa universidade turca. No início da década, Butler já era referência nas discussões sobre gênero, embora suas ideias ainda circulassem principalmente no âmbito da academia. Àquela altura, apenas dez países do mundo reconheciam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na América Latina, a presidente Cristina Kirchner fez da Argentina o primeiro país na região a legalizar o matrimônio homossexual. A visibilidade trans registrava pequenos avanços, com o reconhecimento do uso do nome social em atos e procedimentos no âmbito da administração do estado de São Paulo e do Piauí, por exemplo. As Américas Central e do Sul contavam com os piores índices de assassinatos de transsexuais no mundo. Em 2010, passou a valer no Brasil o Estatuto da Igualdade Racial. Uma de suas medidas foi tornar obrigatório o ensino de história geral da África e da população negra do Brasil nas escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privadas. O documento também defendia políticas públicas que visassem igualar oportunidades e combater a discriminação. No mesmo ano, a diferença entre os salários de homens e mulheres havia crescido, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). De 24,1%, em 2009, eles tinham chegado a 25%. Em 31 de outubro, Dilma Rousseff foi eleita a primeira presidente mulher do país. Seu primeiro ministério contou com nove mulheres. Barack Obama, primeiro negro no comando dos EUA, estava no meio de seu mandato.

Onde estamos em 2019

No final da década, 54 dos quase 200 países do mundo reconhecem casamento ou união homoafetiva, entre eles o Brasil. O feminicídio se tornou um agravante de pena no país e o Supremo Tribunal Federal criminalizou a homofobia e a transfobia, comparando a prática ao racismo. A violência contra a população LGBTIs continua alta. Em 2018, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mulheres ganham em média 20% a menos que os homens no país. Permaneceram a disparidade salarial entre brancos e negros, o alto número de homicídios entre jovens negros e a violência policial contra comunidades pobres. Em diversos setores, da música à moda, dos esportes ao cinema, aparecem campanhas com demandas de mulheres como falta de representatividade, fim da desigualdade salarial e combate ao assédio sexual. O movimento #MeToo expôs homens influentes como o executivo do cinema Harvey Weinstein. O movimento Black Lives Matter mobilizou protestos por todo os EUA depois da morte de jovens negros nas mãos da polícia. O debate público e as redes sociais foram marcados por discussões sobre gênero, raça, identidade, representatividade e diversidade na década. A pesquisa acadêmica sobre desigualdade racial e racismo no Brasil aumentou. Mas políticos e outras figuras públicas conservadoras, incluindo o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, se posicionaram de forma cada vez mais contundente contra muitas das bandeiras desses movimentos, das cotas raciais à produção cultural LGBT. Um dos alvos preferidos dessa guerra cultural é a suposta “ideologia de gênero”, conceito este contestado pela academia.


Para onde vamos até 2029

Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)

“Lugar de fala, privilégios, representatividade, diversidade: todos esses termos já se encontram consagrados no glossário da política contemporânea. Desde a emergência dos chamados ‘novos movimentos sociais’, nas décadas de 60 e 70 do século passado, raça, gênero e sexualidade vêm se tornando identidades cada vez mais determinantes nos modos como pensamos e fazemos política.

Esse processo tem gerado uma série de tensões e embates. De um lado, setores conservadores desqualificam as políticas identitárias por supostamente violarem a regra de ouro da meritocracia, criando privilégios que seriam fruto, em última instância, de ‘mimimi’. De outro, alguns setores progressistas desconfiam das lutas identitárias, que não passariam de questões menores e funcionariam como um dispositivo de dispersão das energias utópicas, retirando o foco do debate sobre desigualdades da área econômica, lugar por excelência dos conflitos de classe. Alguns, inclusive, veriam na fragmentação o combustível que viabilizou a ascensão da extrema direita no Brasil e alhures, caracterizando os temas identitários como mera “cortina de fumaça” dos governos autoritários para nos distrair do que realmente importa.

Ambas posições são equivocadas. A desigualdade tem múltiplas faces, basta lembrar que, em nosso país, a pobreza é estruturalmente racializada e generificada. Além disso, já passou da hora de usar “identitário” como xingamento, afinal, a política sempre conviveu com processos de identificação, sejam eles de classe ou de qualquer outro marcador social da diferença.

O desafio atual é superar essas visões redutoras para, a partir de uma perspectiva interseccional e mais processual das identidades, construir pontes e alianças que permitam reconstruir uma dimensão universalista para a política, mas sem invisibilizar as diferenças que nos constituem.”

Bianca Santana, escritora e jornalista

“Eu escrevia este texto pensando nos desafios imensos de segurança que temos a enfrentar, quando caí em um golpe por telefone: passei o código de verificação do meu WhatsApp para um desconhecido e fiquei sem acesso à minha própria conta. Aparentemente, ele queria pedir dinheiro aos meus contatos. Mas poderia ter acessado informações dos grupos militantes de que faço parte.

Então, os usos que grupos feministas e do movimento negro fazem das redes facilitam as articulações políticas e a disseminação de conteúdos, mas também podem nos tornar mais vulneráveis à vigilância e às perseguições a movimentos sociais. Cuidar de quem cuida e a defesa de defensoras e defensores de direitos humanos me parecem, assim, condicionantes para que tenhamos avanços na próxima década.

Sem sociedade civil organizada não teríamos a que comemorar: o Estatuto da Igualdade Racial, em 2010; a chamada Lei das Cotas, em 2012; a PEC das domésticas, em 2013 — marcos legais importantes, conquistados pela luta dos movimentos, que precisam ser efetivados e ampliados, além do papel.

Também é notável a chamada primavera feminista e o debate antirracista terem ganhado espaço na grande mídia, em editoras comerciais e até em telenovelas. Saímos do discurso falacioso da democracia racial para a “hashtag” racismo e autoras negras nas listas de mais vendidas.

Mas, infelizmente, estes importantes avanços não permitiram que mais pessoas negras fossem eleitas para o legislativo, o executivo, ou passassem em concursos para o judiciário. O poder e a política institucional ainda estão muito distantes de 54% da população.

O acesso à memória negra, com a organização de arquivos, a produção de pesquisas e a disseminação de narrativas diversas são fundamentais para constituirmos novas perspectivas de futuro. E, quem sabe um dia, falemos séria e amplamente sobre reparação do nosso passado escravocrata e presente racista.

O Brasil tem hoje 812 mil pessoas presas, a maior parte delas na chamada guerra às drogas, que encarcera e condena negras, negros e pobres. E vivemos uma política de morte escancarada: de pessoas LGBTIs — uma a cada 19 horas, por assassinato ou suicídio —, de quilombolas — que aumentou 350% entre 2016 e 2017—, da juventude negra, — com um assassinato a cada 23 minutos —, das mulheres negras vítimas de feminicídio — com um aumento de 54% entre 2003 e 2013, enquanto dentre mulheres brancas diminuiu 9,8%. Aspectos do genocídio da população negra que precisam ser interrompidos imediatamente.

E será que na próxima década saberemos, finalmente, quem mandou matar Marielle?”