ESPECIAL
Tri de 1970: o futebol entre a magia e o terror
Por Marcelo Roubicek e Thiago Quadros
em 21 de jun de 2020
O ‘Nexo’ investigou a relação entre a ditadura e o futebol praticado por um dos melhores times de todos os tempos
Quando Carlos Alberto acertou o chute potente nas redes do goleiro italiano Albertosi, a narrativa apoteótica da seleção brasileira de 1970 estava completa. Com seis vitórias em seis jogos – e um desempenho digno dos melhores conjuntos futebolísticos da história –, a seleção conquistou o histórico tricampeonato.
Enquanto no Estádio Azteca, na Cidade do México, torcedores e repórteres invadiam os gramados para captar e participar da comemoração, o presidente Emílio Garrastazu Médici discursava e abria os portões para que uma multidão de brasileiros se formasse em frente ao Palácio da Alvorada. O general foi carregado nos braços de torcedores eufóricos com a vitória da seleção.
Para além do nível do futebol apresentado pela seleção, a conquista da Copa de 1970, que completa 50 anos em 21 de junho de 2020, também é lembrada pelo uso político que a ditadura militar brasileira fez da competição. Abaixo, o Nexo conta as histórias daquele Brasil e daquela equipe, investigando os pontos de conexão entre o que houve de magia nos campos do México e o autoritarismo sombrio que comandava o país.
Fotos: Arquivo Nacional / DOMÍNIO PÚBLIco, Action Images / Sporting Pictures via reuters
O Brasil da repressão e do “milagre”
O Brasil que viu a seleção de 1970 erguer a taça Jules Rimet vinha de uma década de transformações políticas, econômicas e sociais. Nesse novo país que se formava, a principal marca era, evidentemente, o governo militar instaurado seis anos antes do tricampeonato.
Em 1° de abril de 1964, o golpe liderado por militares com apoio de parcelas da sociedade civil retirou o então presidente João Goulart do poder. Goulart (ou, simplesmente, Jango) era acusado de conspirar para instalar o comunismo no Brasil, algo que é refutado pela maioria dos historiadores.
Ainda no início de abril, os militares promulgaram o Ato Institucional nº 1, que determinou que o governo militar poderia cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos ou afastar do serviço público quem pudesse ameaçar a segurança nacional. O ato determinou a eleição para presidente e vice-presidente da República pelo voto indireto, via Congresso. Foi o primeiro de uma série de atos que consolidaram o regime militar e reduziram liberdades políticas e de expressão dos brasileiros.
O governo Castello Branco
Para o lugar de Jango, foi escolhido como presidente do Brasil o marechal Humberto de Alencar Castello Branco, um dos articuladores do golpe. Foi o primeiro presidente do período ditatorial, escolhido por um Congresso já desfigurado por cassações.
Castello Branco assumiu com um discurso de desenvolver o país e conter a escalada inflacionária que vinha desde os anos 1950. Para tal, foi aplicado o Plano de Ação Econômica do Governo, que, além de propor um ajuste fiscal, instituiu uma política salarial que resultou na corrosão do valor real do salário mínimo. O governo Castello Branco também iniciou a perseguição política e a tortura a opositores.
No início de 1967, foi promulgada uma nova Constituição, que substituiu a carta anterior, de 1946. O novo documento consolidou o poder dos militares e ratificou o autoritarismo e descarte dos princípios democráticos no país, algo que já estava sendo posto em prática desde 1964.
Costa e Silva: linha dura e “milagre econômico”
Em março de 1967, Castello Branco deu lugar para o general Artur da Costa e Silva, um dos principais expoentes da chamada “linha dura” dos militares. Sob Costa e Silva, a repressão política e cerceamento das liberdades se intensificaram.
O maior símbolo disso foi o Ato Institucional nº 5, publicado em 13 de dezembro de 1968, que foi o mais radical dos 17 atos institucionais emitidos nos 21 anos de ditadura militar (1964-85). Por meio do AI-5, os militares atribuíram para si poderes de exceção, abrindo um período de repressão marcado pela intensificação da perseguição a adversários políticos, prisão, tortura, execuções e censura à imprensa e às artes. O Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas estaduais foram fechados, deputados federais foram cassados; e músicos, atores, escritores e jornalistas passaram a trabalhar sob censura prévia.
Foto: Arquivo Nacional / domínio público
Policiais sobre o Congresso Nacional em outubro de 1966
Foi também sob Costa e Silva que teve início o chamado “milagre econômico”, quando a economia brasileira cresceu a taxas muito altas por anos consecutivos. Esse episódio da história econômica brasileira teve como protagonista o então ministro da Fazenda Antônio Delfim Netto, que assumiu a pasta a convite do presidente Costa e Silva.
O “milagre” era baseado em expansão do crédito e aumento de gastos do governo via realização de grandes obras. Também houve incentivo às exportações, com isenção de impostos e desvalorização da taxa de câmbio. Mas o “milagre” também teve um lado sombrio: houve arrocho salarial e forte aumento das desigualdades no Brasil.
Um dos slogans da política econômica de Delfim Netto dizia que, primeiro, era preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo. O bolo cresceu. Por anos, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil esteve entre os maiores do mundo: entre 1968 e 1973, o crescimento variou entre 9,5% e 14%. Os principais beneficiados foram os setores industriais da economia.
A chegada de Médici ao poder
O mandato de Costa e Silva foi interrompido em 1969, quando ele foi afastado por uma trombose cerebral que acabou o vitimando naquele mesmo ano. Uma junta militar assumiu o governo e elegeu o general Emílio Garrastazu Médici como seu sucessor na Presidência.
Sob Médici, teve início a Oban (Operação Bandeirante), um centro de combate a organizações de oposição política ao regime militar patrocinado por empresários. Inicialmente a Oban era clandestina. Nessa época, foram institucionalizados os Codis (Centro de Operações para a Defesa Interna), principal aparato de repressão do regime.
Mas nem todos os acontecimentos marcantes no período do governo Médici estavam diretamente ligados a decisões políticas e medidas autoritárias. Afinal, foi durante o mandato do general que a seleção brasileira venceu a Copa de 1970, no México.
Fotos: Action Images / Sporting Pictures via reuters, ARQUIVO NACIONAL / DOMÍNIO PÚBLICO
A seleção brasileira entre Liverpool e Guadalajara
Em 19 de julho de 1966, em Liverpool, a seleção brasileira foi eliminada da Copa do Mundo da Inglaterra ainda na primeira fase. A vitória de 2 a 0 contra a Bulgária na estreia – na última partida oficial em que jogaram juntos Pelé e Garrincha – foi seguida de duas derrotas por 3 a 1, primeiro para a Hungria e depois para Portugal. O fiasco representou uma das piores participações do Brasil em Copas do Mundo.
Após a campanha fracassada, João Havelange, presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos, hoje CBF, Confederação Brasileira de Futebol) decidiu trocar o treinador. Saiu Vicente Feola, que havia sido campeão em 1958, e entrou Aymoré Moreira, que havia treinado o time bicampeão de 1962.
Moreira comandou a seleção entre 1967 e 1968 e teve um desempenho ruim. Foram vinte partidas (a maioria amistosos), com 11 vitórias, 5 empates e 4 derrotas. Para as eliminatórias de 1969, a CBD buscou outro treinador.
João Saldanha na seleção
No período que antecedeu as eliminatórias da Copa de 1970, havia uma forte pressão sobre a CBD – e, consequentemente, sobre o Ministério da Educação, ao qual a confederação estava ligada. Na imprensa esportiva brasileira, falava-se em crise do futebol brasileiro. Uma das vozes mais críticas era a do jornalista João Saldanha.
Saldanha era considerado uma das maiores autoridades sobre futebol do país. Entre 1957 e 1959, havia treinado o Botafogo e conquistado o Campeonato Carioca em seu primeiro ano no cargo. Além da vida no futebol, Saldanha era um militante político, ligado ao Partido Comunista Brasileiro. Era abertamente crítico à ditadura.
Mesmo assim, Saldanha foi convidado em fevereiro de 1969 para ser o novo treinador da seleção brasileira. Segundo Lívia Gonçalves Magalhães, professora de história na UFF (Universidade Federal Fluminense), a ideia da CBD naquele momento era de apaziguar a reprovação da imprensa, colocando um jornalista no comando do time – estratégia que, aparentemente, se sobrepôs ao posicionamento político de Saldanha.
“Vemos [nos arquivos do Sistema Nacional de Informações] que João Saldanha vinha sendo acompanhado desde a década 1940. Ou seja, sabiam quem era João Saldanha: sabiam que ele era militante comunista, que tinha vivido na clandestinidade e que tinha relações com o Partido Comunista. Tudo isso era do conhecimento da CBD e do governo. E, ainda assim, deixaram Saldanha assumir”
Lívia Gonçalves Magalhães, professora de história na UFF e autora do livro “Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina”
A campanha das eliminatórias
Saldanha chegou à CBD com a promessa de montar um time de “feras”. Dito e feito: em 1969, o time ganhou todos os seis jogos das eliminatórias, marcando 23 gols e sofrendo apenas 2.
A equipe base que jogou sob Saldanha no torneio classificatório não era a mesma que posteriormente conquistou o tricampeonato no México. Entre os titulares das eliminatórias, quatro perderiam o posto no mundial: os zagueiros Joel Camargo e Djalma Dias, o lateral esquerdo Rildo e o ponta Edu. Todos eles jogavam no Santos à época.
Além dos jogadores, havia outras diferenças em relação ao time da Copa de 1970. Ao Nexo, o jornalista Paulo Vinicius Coelho explicou que o sistema tático em agosto de 1969 não era o mesmo em relação à Copa do Mundo do ano seguinte.
“Taticamente o time mudou. Mudou do 4-2-4 para o 4-3-3. [O time de 1970] era um time que jogava de maneira diferente do que jogava na eliminatória”
Paulo Vinicius Coelho, comentarista esportivo, blogueiro do globoesporte.com e colunista da Folha de S.Paulo, em entrevista ao Nexo
Ou seja, diferente do esquema usado no México, o time das eliminatórias jogava com quatro jogadores na defesa, dois no meio campo (Piazza e Gérson) e quatro no ataque. Apesar do aproveitamento perfeito, a vaga só veio na última rodada das eliminatórias. A vitória por 1 a 0 sobre o Paraguai, no Maracanã, marcou o maior público pagante da história do futebol, com 183 mil pessoas vendo a seleção vencer com gol de Pelé.
A queda de Saldanha
A ótima campanha nos seis jogos das eliminatórias não significou que o ambiente da seleção antes da Copa de 1970 estava livre de tensão. Sob o apelido de “João Sem Medo” – atribuído pelo jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues – Saldanha acumulou atritos em diferentes níveis.
A começar pelos jogadores. Saldanha foi questionado por Pelé pela opção de usar apenas dois jogadores no meio de campo. Em resposta, o treinador – que havia tido acesso a exames de vista que mostraram que o camisa 10 era míope – disse que Pelé estaria ficando cego.
“João Sem Medo” também teve conflito com o então técnico do Flamengo, o ex-goleiro Yustrich. Insatisfeito com críticas públicas feitas pelo comandante rubro-negro, Saldanha foi armado à concentração do Flamengo para ameaçar Yustrich, mas não o encontrou.
O mais conhecido atrito de João Saldanha, porém, foi com o presidente Emílio Garrastazu Médici. A visão do presidente era de que o atacante Dario – o Dadá Maravilha, que jogava no Atlético Mineiro – deveria ser convocado para atuar na seleção. Perguntado sobre a opinião de Médici, Saldanha respondeu com uma frase que se tornou célebre:
“Nem eu escalo o ministério e nem o presidente escala time”
João Saldanha, jornalista e treinador da seleção brasileira entre 1969 e 1970
Diversas versões sobre o episódio dizem que a resposta de Saldanha foi recebida como uma afronta pelo regime militar. Mas além do questionamento público ao presidente, havia outro fator de conflito entre as duas partes: os militares suspeitavam que Saldanha estava levando ao exterior documentos que denunciavam as práticas violentas e antidemocráticas do governo – algo que, mesmo diante de constantes negativas, nunca ficou claro.
Houve também problemas dentro de campo. Em 4 de março de 1970, o Brasil jogou seu primeiro amistoso em preparação para a Copa do Mundo no Beira-Rio, em Porto Alegre. Entre os quase 70 mil presentes para ver a partida contra a Argentina, estava o ditador Emílio Garrastazu Médici. O jogo terminou em derrota por 2 a 0 e vaias da torcida. As críticas a Saldanha ganharam corpo. Quatro dias depois, a seleção enfrentou a Argentina novamente e venceu, desta vez no Maracanã. Mas o empate contra o Bangu em 14 de março aumentou os questionamentos sobre o trabalho do treinador.
O momento ruim da seleção tornou-se assunto de Estado. O então Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, convocou o presidente da CBD, João Havelange, para prestar esclarecimentos. Havelange também conversou com outros militares integrantes do governo.
Em 17 de março, João Saldanha foi demitido. Não se sabe quais foram os motivos exatos para a decisão, e há diferentes versões nas discussões historiográficas sobre o tema. Em 1988, Saldanha chegou a dizer que foi demitido por ordens do governo militar. Em 1970, seu comentário sobre o episódio tinha sido mais enigmático:
“Por que eu saí é muito fácil de explicar. O que eu tenho dificuldade de explicar é por que eu entrei”
João Saldanha, treinador da seleção brasileira entre 1969 e 1970
Foto: Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images
Jogadores brasileiros em treino físico no México
Zagallo e a preparação para a Copa
No dia seguinte à demissão de Saldanha, Mário Jorge Lobo Zagallo se tornou o treinador da seleção. Como jogador, havia participado das campanhas vitoriosas de 1958 e 1962. A estreia de Zagallo aconteceu em 22 de março, a apenas 73 dias da estreia no México: vitória por 5 a 0 contra o Chile, no Morumbi.
Nos dois meses e meio antes do mundial, Zagallo alterou a convocação e a escalação do time. Cinco novos jogadores foram convocados para viajar ao México, entre eles o goleiro Félix e o atacante Dario, pivô da tensão entre Saldanha e Médici. Para o escritor Sérgio Rodrigues, a convocação de Dario não foi algo que mudou os rumos daquela seleção.
“A saída do Saldanha é uma história cheia de áreas de sombra. Tem a história da convocação do Dario para agradar o presidente. São coisas folclóricas. Agora, isso teve relevância muito pequena no futebol. O Dario foi lá [ao México] para fazer número. O Saldanha começou a construir essa equipe. O Zagallo botou a cara dele em algumas coisas. Mas não acho que o Zagallo tenha sido um interventor da ditadura dentro da seleção. De modo nenhum”
Sérgio Rodrigues, colunista da Folha e autor do livro “O drible”, em entrevista ao Nexo
Entre as mudanças feita por Zagallo, estava a troca do esquema tático para o 4-3-3, com Rivellino entrando no meio campo. Além disso, Piazza foi recuado para jogar como zagueiro, Everaldo assumiu a lateral esquerda e Tostão passou a ser escalado no ataque junto com Pelé. Estava formada a base da seleção que conquistaria o tricampeonato.
Outro foco do trabalho preparativo da seleção foi a questão física. Havia, na comissão técnica, militares formados em educação física.
“O trabalho de 1970 tem muito a ver com preparação física. O trabalho começou com muitas informações sobre o comportamento na altitude, ainda quando João Saldanha era o técnico. Essa comissão técnica continuou depois da troca do técnico, mas a base dos trabalhos físicos já estava feita”
Paulo Vinicius Coelho, comentarista esportivo, blogueiro do globoesporte.com e colunista da Folha de S.Paulo, em entrevista ao Nexo
FOTOS: ARQUIVO NACIONAL / DOMÍNIO PÚBLICO, el gráfico / domínio público via wikicommons
A magia no México
A estreia contra a Tchecoslováquia
Em 3 de junho, a seleção estreou em Guadalajara contra a Tchecoslováquia, reeditando a final da Copa de 1962. Veio a campo a formação clássica do tricampeonato: Félix; Carlos Alberto, Piazza, Brito e Everaldo; Clodoaldo, Gérson e Rivellino; Jairzinho, Tostão e Pelé.
A Tchecoslováquia abriu o placar com Petras, no início do jogo. O Brasil empatou ainda no primeiro tempo, com gol de falta de Rivellino, e virou no segundo, com um gol de Pelé e dois de Jairzinho, sacramentando o resultado em 4 a 1.
Apesar da goleada, o lance mais marcante da estreia da seleção no México foi um chute para fora. Aos 41 minutos do primeiro tempo, Pelé, ainda atrás da linha do meio campo, viu o goleiro adiantado e arriscou. A bola passou rente à trave esquerda de Viktor. O lance ficou conhecido como “o gol que Pelé não fez”.
O duelo com os campeões
Quatro dias depois da estreia, a seleção brasileira voltou aos gramados de Guadalajara, desta vez para enfrentar os campeões mundiais de 1966: a Inglaterra.
A partida – considerada posteriormente um dos grandes jogos da história – foi equilibrada e tensa. Os ingleses tiveram ótima atuação do zagueiro Bobby Moore, que dificultou o trabalho do ataque brasileiro.
Assim como na estreia, o lance mais lembrado da partida foi uma bola que não entrou no gol: uma cabeçada fulminante de Pelé defendida por Gordon Banks, num lance que ficaria conhecido como a “defesa do século”.
O Brasil acabaria vencendo por 1 a 0, com gol de Jairzinho, após jogada de Tostão e assistência de Pelé.
Foto: Action Images / Sporting Pictures via reuters
Pelé lamenta a “defesa do século” de Gordon Banks
Melhor campanha do grupo
Praticamente classificada, a seleção enfrentou a Romênia na terceira e última partida da primeira fase, buscando confirmar a melhor campanha do grupo. Caso vencesse, não precisaria sair de Guadalajara para o confronto das quartas de final.
O objetivo foi cumprido com mais uma vitória: 3 a 2, com dois gols de Pelé e um de Jairzinho. O Brasil terminava a primeira fase na liderança do grupo, com três vitórias em três jogos.
Adversário sul americano nas quartas
No primeiro jogo do mata-mata, a seleção do Brasil enfrentou o Peru, que tinha avançado em segundo lugar de seu grupo, atrás da Alemanha. Antes disso, nas eliminatórias, a seleção peruana havia eliminado a Argentina, que nem chegou a ir ao México. O técnico do rival brasileiro nas quartas de final era Didi, ex-meio campista que havia sido um dos principais jogadores do Brasil nas bem-sucedidas campanhas das Copas de 1958 e 1962. Dentro das quatro linhas, o maior trunfo dos peruanos era Teófilo Cubillas, que viria a ser eleito o melhor jogador jovem da competição.
Num jogo movimentado, Rivellino, Tostão (duas vezes) e Jairzinho garantiram a passagem para as semifinais com uma vitória por 4 a 2.
FOTO: Keystone/Hulton Archive via Getty Images
Sem encostar na bola, Pelé dribla Mazurkiewicz na semifinal
A revanche de 1950
Em 17 de junho de 1970, a seleção brasileira foi a campo enfrentar o Uruguai por uma vaga na final da Copa. Na memória brasileira, ressoava a data 16 de julho de 1950, quando, jogando em casa e precisando apenas de um empate para conquistar sua primeira Copa do Mundo, a seleção fora derrotada de virada pelo Uruguai. O confronto no estádio Jalisco era o primeiro em mundiais desde o “Maracanazo”.
Foi um jogo nervoso. O Uruguai abriu o placar, mas a seleção empatou ainda no primeiro tempo com Clodoaldo. Na segunda etapa, a seleção se impôs e marcou mais dois gols, com Jairzinho e Rivellino.
Apesar de não terem faltado gols na vitória brasileira por 3 a 1, mais uma vez uma tentativa frustrada entrou para a história, novamente protagonizada por Pelé. Num drible de corpo magistral, ele fintou o goleiro Mazurkiewicz sem tocar na bola. Desequilibrado e sem o ângulo perfeito para finalizar, ele acabou errando alvo.
O final apoteótico
Em 21 de junho de 1970, a seleção brasileira jogou sua única partida no Estádio Azteca, na Cidade do México, em toda a Copa. O adversário era a Itália, que havia vencido a Alemanha Ocidental por 4 a 3 na semifinal – em partida conhecida como o “jogo do século”, com cinco gols saindo na prorrogação. Quem vencesse entre Brasil e Itália seria o primeiro tricampeão do mundo e levaria em definitivo a taça Jules Rimet.
O Brasil deu espetáculo, numa das maiores atuações coletivas da história do esporte. Com gols de Pelé, Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto, a seleção derrotou os italianos por 4 a 1 e ficou com a taça.
Foto: Horstmüller/ullstein bild via Getty Images
Pelé, rodeado, ergue a taça Jules Rimet no Estádio Azteca
A aura da seleção de 1970
Para Paulo Vinicius Coelho, o gol de Carlos Alberto, um dos mais marcantes da história das Copas do Mundo, foi o ápice da conquista de uma seleção que, em sua visão, foi revolucionária dentro de campo.
“Para mim, o time de 1970 é a fronteira do futebol moderno. Mais do que a Holanda [de 1974, conhecida como a Laranja Mecânica]. Se você pensar na movimentação, o quarto gol do Brasil contra a Itália começa com o Tostão, que era o centroavante, roubando a bola como se fosse lateral esquerdo. A jogada passa por Jairzinho, que era o camisa 7, na ponta esquerda, e termina com o Carlos Alberto, que era o lateral direito, finalizando como se fosse ponta direita. Havia uma rotatividade ali”
Paulo Vinicius Coelho, comentarista esportivo, blogueiro do globoesporte.com e colunista da Folha de S.Paulo, em entrevista ao Nexo
A seleção brasileira de 1970 é lembrada como um dos maiores times da história. Para o escritor Sérgio Rodrigues, o talento do conjunto brasileiro é o fator mais importante para explicar a aura que se formou, historicamente, em torno da equipe.
“Você tinha ali uma geração de jogadores – e um certo amadurecimento da escola brasileira de futebol, que vinha desde 1958 – que contribuiu para aquilo se transformar realmente num espetáculo mágico”
Sérgio Rodrigues, colunista da Folha e autor do livro “O drible”, em entrevista ao Nexo
A conquista da seleção brasileira foi vista por milhões de pessoas ao redor do mundo. A Copa de 1970 foi a primeira transmitida ao vivo em quase todos os países desenvolvidos do planeta. Também foi a primeira vez que a competição foi transmitida a cores – apesar de, no Brasil, poucas pessoas terem acesso à tecnologia.
O alcance que a televisão deu à Copa de 1970 ajudou a consolidar a imagem de Pelé como o maior astro do futebol mundial, aos 29 anos. O craque, que já havia cultivado fama por suas conquistas com o Santos e a seleção brasileira, foi protagonista novamente nos gramados do México, com quatro gols e cinco assistências. A Copa do Mundo de 1970 foi a última em que Pelé jogou. Cinquenta anos depois, ele segue sendo o único jogador com três Copas conquistadas.
FOTOS: ARQUIVO NACIONAL / DOMÍNIO PÚBLICO, Gerência de memória/CBF
O uso político da seleção
Enquanto a seleção brilhava no México, no Brasil, o regime militar comandado por Médici se movimentava para tirar proveito do êxito da seleção nacional. Segundo Lívia Gonçalves Magalhães, professora da UFF, a ideia da ditadura era de associar a própria vitória da seleção ao que seria uma vitória do regime. O regime tentava afirmar que quem torcia pela seleção torcia também pelo governo militar.
A estratégia da ditadura teve como símbolo a marchinha “Pra frente Brasil”, escrita por Miguel Gustavo, jornalista e compositor de jingles. A música trata da união nacional em torno do futebol, e foi usada pelo regime como ponte de associação entre o governo e a seleção. O Brasil retratado pela ditadura era um Brasil eufórico, marcado pela estabilidade e desenvolvimento econômico – e a conquista de 1970 casava com essa ideia.
“Noventa milhões em ação, pra frente Brasil, no meu coração. Todos juntos, vamos pra frente Brasil, salve a seleção! De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão. Todos ligados na mesma emoção. Tudo é um só coração. Todos juntos vamos pra frente Brasil, salve a seleção!”
“Pra frente Brasil”,
música de Miguel Gustavo
O envolvimento do regime militar com a Copa de 1970 passou também pelos investimentos feitos em infraestrutura nas telecomunicações. A televisão se consolidava na virada da década como a mídia mais moderna e o governo militar buscou se apropriar dos avanços tecnológicos estratégicos a ela ligados.
“Solidariedade também é juntar-se às paixões da alma popular. E, nas asas dessa paixão, meu governo se empenhou para que trouxéssemos o México à platéia de todos os lares do Brasil”
Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil, em discurso em São Paulo em janeiro de 1970
O sequestro do embaixador alemão
Durante a Copa, um momento em que ficou visível a apropriação da seleção pelo regime foi o sequestro do embaixador alemão, Ehrenfried von Holleben, em 11 de junho – dia seguinte à vitória brasileira sobre a Romênia. O sequestro foi conduzido pelas guerrilhas da Aliança Libertadora Nacional e pela Vanguarda Popular Revolucionária. Em troca, foram libertados 40 presos políticos do regime.
Os militares usaram o episódio como tentativa de gerar um consenso na opinião pública contra grupos opositores, pintando-os como desagregadores do Brasil. Como parte dos esforços, o governo quis associar o discurso oficial ao dos jogadores. Uma nota emitida pelo Ministério do Exército – e repercutida na imprensa como notícia – dizia que o grupo de atletas estaria preocupado e comovido com a situação.
“Causou profundo impacto na Seleção a notícia chegada ao México sobre o seqüestro do embaixador alemão. Pelé, Brito, Rivellino, Clodoaldo e outros craques lamentaram que maus traidores e criminosos venham a quebrar a tranqüilidade e o entusiasmo da seleção. Lamentaram nossos craques que os terroristas, a serviço de países comunistas, tentem com atos criminosos atingir um país amigo”
nota do Ministério do Exército, emitida após o sequestro do embaixador alemão
No dia 17 de junho, as capas dos jornais destacavam a libertação de von Holleben na noite anterior e a partida contra o Uruguai, que seria disputada naquele dia.
Foto: Keystone/Hulton Archive via Getty Images
Médici recebe o elenco tricampeão em Brasília
A figura de Médici
Outra estratégia usada pelo regime militar durante a Copa do Mundo foi a de associar o general Médici à paixão popular pelo futebol, como explicou ao Nexo Lívia Gonçalves Magalhães, professora da UFF. A propaganda do regime se aproveitou do gosto do presidente pelo futebol e buscou explorar isso.
A publicidade oficial, portanto, tentava retratar o ditador como um torcedor comum. Circularam, durante o período da Copa, imagens do presidente escutando os jogos da seleção em um rádio de pilha – e não na televisão a cores onde via, de fato, os jogos. A aproximação visada entre regime e população, portanto, tinha na seleção um de seus principais instrumentos. E essa aproximação tinha interesses políticos. De acordo com artigo publicado pelo jornalista e pesquisador Marcos Guterman na revista Projeto História em 2004, esse interesse era pautado pela busca da popularidade como tentativa de legitimar o regime.
Em 21 de junho, quando a seleção brasileira venceu a Itália na Cidade do México, Médici tomou para si o protagonismo da comemoração. A capa da Folha de S.Paulo de 22 de junho de 1970 dedica vários parágrafos às ações do presidente, relatando a festa feita em Brasília:
“Ao término da partida, o presidente mandou que os torcedores que se encontravam na praça fronteiriça entrassem para o Palácio e saiu para o meio do povo, enrolado em uma bandeira brasileira. Os torcedores o carregaram. Quando o puseram no solo, o presidente pegou uma bola dos netos e começou a mostrar sua habilidade no esporte em que o Brasil é campeão mundial. Fez embaixadas e chegou a dar umas de calcanhar, sendo estimulado pelos fãs, que diziam ‘se o Zagalo soubesse, hein, presidente... ’”
capa da Folha de S.Paulo, 22 de junho de 1970
A imagem do presidente nos braços do povo era perfeitamente compatível com o projeto de associar a vitória da seleção ao regime militar e de retratar Médici como mais um torcedor eufórico. Em discurso feito após a vitória, os objetivos ficaram explícitos:
“Desejo que todos vejam no Presidente da República um brasileiro igual a todos os brasileiros, como um homem comum, como um brasileiro que acima de todas as coisas, tem um imenso amor ao Brasil e uma crença inabalável nesse país e nesse povo [...] Na vitória esportiva, a prevalência de princípios que nos devemos armar para a própria luta em favor do desenvolvimento nacional. É desse ciclo a nossa conquista, a vitória da unidade e da conquista de esforços. [...] Neste momento de vitória, trago ao povo a minha homenagem, identificando-me todo com a alegria e a emoção de todas as ruas, para festejar, em nossa incomparável Seleção de Futebol, a própria afirmação do valor do homem brasileiro”
Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil entre 1969 e 1974, em discurso em 21 de junho
Dois dias após a vitória, a seleção foi recebida pelo presidente em Brasília – gesto tradicional, feito antes por Juscelino Kubitschek em 1958 e João Goulart em 1962, e que foi repetido também por Itamar Franco em 1994 e por Fernando Henrique Cardoso em 2002. O encontro rendeu imagens do presidente levantando a taça, rodeado de jogadores sorridentes.
Fotos: Action Images / MSI via reuters, DOMÍNIO PÚBLICO / ARQUIVO NACIONAL
A seleção e a ditadura
No livro “Tempos vividos, sonhados e perdidos”, publicado em 2016 pela Companhia das Letras, o ex-atacante Tostão diz que considerou não ir a Brasília, como forma de protesto. Ele conta que refletiu, mas decidiu manter o compromisso com os companheiros e com a seleção. “Precisava separar a política do esporte”, escreve Tostão.
Os esforços da ditadura de se associar à seleção de 1970 levam à pergunta: até que ponto foi bem sucedida a tentativa do regime autoritário e antidemocrático de capitalizar a vitória mágica dentro de campo? Até que ponto é possível, como disse Tostão, separar a política do esporte quando o assunto é a Copa de 1970?
Para o jornalista Paulo Vinicius Coelho, os temas são separáveis. Isto é, o sucesso da ditadura não dependia do sucesso do futebol nem vice-versa.
“Não é por causa do futebol que houve a tortura. A tortura houve porque havia um governo totalitário e repressor. A ditadura é grave e ela existiria independentemente da Copa do Mundo. Não quer dizer que o sucesso do Brasil na Copa do Mundo não tenha sido usado para distrair parte da população. Mas isso foi um período. A Copa do Mundo começou 31 de maio e terminou em 21 de junho – foram 22 dias. E a ditadura durou 21 anos”
Paulo Vinicius Coelho, comentarista esportivo, blogueiro do globoesporte.com e colunista da Folha de S.Paulo, em entrevista ao Nexo
O escritor Sérgio Rodrigues tem entendimento parecido a respeito da relação entre o regime e a seleção de 1970. Para ele, o time tricampeão e a ditadura são coincidentes, mas não necessariamente relacionáveis.
As coisas não são tão diretas assim. A ditadura ia continuar sendo exatamente o que foi sem aquela seleção. O tempo histórico daquele time, daquele futebol, é um tempo histórico que cruza com o da ditadura, mas, na verdade, é anterior ao da ditadura. Aquela seleção é o desenvolvimento natural da seleção de 1958 e 1962, com Pelé como fio condutor. Essencialmente, não tem nada a ver com a ditadura. Em 1970, ele [o regime] não contaminou o futebol, ele tentou pegar uma carona”
Sérgio Rodrigues, colunista da Folha e autor do livro “O drible”, em entrevista ao Nexo
Já Lívia Gonçalves Magalhães, professora da UFF, entende que a relação entre o futebol e o governo em 1970 deve ser considerada dentro de um contexto. Isso vale tanto para os jogadores quanto para os torcedores que apoiaram a equipe.
“Precisamos sim, dissociar. Mas precisamos também entender que é preciso considerar o contexto. O futebol, a seleção, é anterior à ditadura. É a ditadura que se associa do futebol. Nessa disputa, o torcer pode ser, de alguma forma, uma resistência de algo que é popular, que é da sociedade. A partir do momento em que vemos o futebol simplesmente como algo manipulável pelos governos, estamos acreditando que ele é isso, que ele é simplesmente um objeto que pode ser instrumentalizado. Mas ele é mais que isso”
Lívia Gonçalves Magalhães, professora de história na UFF e autora do livro “Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo e ditadura no Brasil e na Argentina”
Produzido por Marcelo Roubicek
Arte por Thiago Quadros e Guilherme Falcão
Desenvolvimento por Thiago Quadros
Edição por Antonio Mammi
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