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‘Sobre desistir’: a vida entre sacrifícios e concessões

Adam Phillips


03 de maio de 2024

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O 'Nexo' publica um trecho de ‘Sobre desistir’ do psicanalista Adam Phillips. No livro, o autor explica por que a desistência é sempre um momento crítico, para o bem ou para o mal

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Em geral, quando alguém declara em tom corriqueiro que vai “deixar” de fazer algo, a pessoa costuma anunciar que vai abrir mão de algum prazer anestésico cotidiano, como o fumo, o álcool ou o chocolate; normalmente, a pessoa não quer dizer que pretende deixar a vida como um todo – ou seja, cometer suicídio (e note-se que as pessoas tendem a querer deixar apenas hábitos supostamente autodestrutivos). Desistir de certas coisas pode ser bom para nós. Ainda assim, a ideia de simplesmente desistir nunca é atraente. Como alcoólatras que precisam que todos bebam, existe um determinado consenso cultural de que vale a pena viver (ou mesmo de que a vida é sagrada). Em termos mais simples, existem sacrifícios bons e ruins, mas nunca sabemos de antemão qual é qual. Há renúncias que encaramos como admiráveis e até mesmo desejáveis, mas há também aquelas que sentimos como profundamente perturbadoras. O que precisamos abandonar em nome da esperança e do desespero reais, o que imaginamos estar fazendo quando abrimos mão de algo? Este livro trata, portanto, da ambiguidade real e abrangente de uma ideia simples. Abrimos mão das coisas quando acreditamos que podemos mudar e desistimos quando acreditamos que não podemos mais.

Todo novo pensamento, assim como todo velho pensamento, gira em torno do sacrifício e do que precisamos abrir mão para alcançar a vida que deveríamos querer. Em nome da saúde, do planeta, de nosso bem-estar emocional e moral – e, naturalmente, em nome do lucro dos ricos –, hoje espera-se que a gente abra mão de muitas coisas. Porém ao lado dessa orgia de autossacrifícios em prol de autoaperfeiçoamento – ou, talvez, subjacente a ela – existe o desespero e o terror de querer simplesmente desistir. Há a necessidade de abafar a sensação de que nem sempre vale a pena lutar pela vida, apesar de toda a ajuda que a religião, as terapias, a educação, o entretenimento, as mercadorias e a arte em geral nos oferecem. Cada vez mais pessoas sentem que o que as motiva a seguir em frente é o ódio, o preconceito e a busca por bodes expiatórios. Como se, mais do que nunca, fôssemos seduzidos pelo quem Nietzsche se refere, em “Genealogia da moral”, como “uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os pressupostos mais fundamentais da vida”.

A constante desilusão com a política, os relacionamentos pessoais, a exigência da chamada liberdade de expressão – e o medo dessa mesma liberdade –, o terror e o anseio pelo consenso e o consenso forçado dos vários fundamentalismos criaram um ambiente cultural de intimidação e justa indignação. É como se a ambivalência em relação a nossa vitalidade – a sensação de estar vivo que, ainda que efêmera, nos sustenta – tenha se transformado em uma tensão insuportável e que precisa ser resolvida. Portanto, mesmo que ainda sejamos incapazes de imaginar ou de descrever a vida sem a ideia do sacrifício e de sua cúmplice secreta, a concessão, não temos tanta noção do que queremos e podemos conseguir por meio desse sacrifício; seja aquilo que achamos que queremos, seja o que ainda não temos ciência de querer. A formulação de ideais pessoais e políticos se tornou muito certa, por um lado, ou precária demais, por outro. E toda a noção de sacrifício depende de sabermos o que queremos.

Abrir mão é sempre sacrificar algo em prol de outra coisa que acreditamos ser melhor. Sempre que queremos fazer algo, sempre que queremos fazer uma escolha, é inevitável perguntar: de que teremos que abrir mão? Por definição, toda escolha é excludente e revela preferência. Ou seja, há sempre uma negociação imaginária em curso: ao abrir mão de alguma coisa, abre-se espaço para outra. Não importa se é da convicção, da liberdade de expressão, da sociabilidade, da vontade, do sentido ou da própria vida que estamos desistindo – como cada capítulo deste livro aborda de maneiras distintas. O fato é que sempre pensaremos naquilo a ser recebido em troca, por mais inconsciente que seja a negociação. Sempre é válido discutir o que queremos com qualquer sacrifício. O sacrifício e seus descontentamentos – eis um tema para ser discutido. Desistir ou abrir mão de algo ou alguém sempre expõe o que supomos querer.

Portanto, devemos nos lembrar de que entregar os pontos – em sua miríade de formas – também é uma forma de ganhar pontos (e é sempre uma entrega, como alguém que se entrega às autoridades). Desistir de algo é buscar uma vantagem presumida, um prazer aparentemente preferido, mas no contexto de uma economia incompreensível ou, como acontece em todas as economias, imprevisível. Como se em determinados momentos da vida recebêssemos a ordem: “Desista!”, ou “Abra mão disso!”, disparando uma espécie obscura de desejo, esperança e barganha. Calculamos, até onde podemos, o efeito de nosso sacrifício, o futuro que queremos dele (nunca fica claro, por exemplo, se o sacrifício é um apelo, uma coerção, ou ambos, uma manipulação, uma entrega total, ou ambos). Como se, em determinados momentos da vida, perguntássemos o que devemos fazer para alcançar certas pessoas, ou a nós mesmos: para alcançar a vida que queremos. Perguntamos o que vamos ter que perder para ganhar aquilo que achamos que queremos. Naturalmente, esses são os movimentos de um animal onisciente, que afirma ser capaz de saber o que quer, e para quem a única ação imaginável é conhecer as próprias vontades e ter boas ideias sobre como saciá-las. O sacrifício, ou melhor, a desistência é uma forma de previsão.

Crianças são entregues para a adoção, exércitos se entregam quando são derrotados na guerra e as pessoas entregam os pontos quando não aguentam mais. Em cada um desses exemplos, é como se algo fosse dado, um acordo necessário firmado, um ponto alcançado, uma crise provocada e uma troca iniciada. Como se a desistência se relacionasse com a transição e a transformação, tanto quanto com o sucesso e o fracasso (toda a ideia em torno da desistência é um ímã para moralismos: sempre que surge a opção de desistir, as críticas e os julgamentos se tornam irresistíveis). Desistimos ou abrimos mão de algo quando acreditamos não conseguir mais continuar como estamos. Portanto, uma desistência de alguma forma é sempre um momento crítico, por mais tentados que estejamos a minimizá-lo. Porém desistir como um prelúdio, como condição para que outra coisa aconteça, como forma de antecipação ou espécie de coragem é o sinal da morte de um desejo; e, pelo mesmo motivo, é capaz de abrir espaço para outros desejos. Em outras palavras, desistir é a tentativa de criar um futuro diferente: embora, naturalmente, saibamos que as consequências de nossas ações podem divergir de nossas intenções (desistir é ao mesmo tempo um risco e um vaticínio).

O pragmático em nós se pergunta se qualquer sacrifício – ou se o próprio ato de se sacrificar – nos trará a vida que queremos, ou que não sabemos que queremos. E esse mesmo pragmático também pode se perguntar por que colocamos essa experiência nesses termos, por que falamos em “desistir”: qual o propósito de conferir essa descrição em particular a algo que fazemos com alguma frequência, mas parecemos não conseguir requalificar? Afinal, se desistir não passa de mudar de ideia, revisar, reconsiderar ou repensar – ou qualquer outra expressão para a própria requalificação –, então desistir é uma maneira de mudar a aparência das coisas. E, por ter outra aparência, uma maneira de trazer consequências diferentes. Talvez não precisemos pensar na vida em termos de perdas e ganhos, ou lucro e prejuízo, como a ideia de desistir pode implicar, reforçando assim uma norma cultural muito apreciada. Talvez não precisemos perder a vida para encontrá-la; podemos simplesmente procurá-la por aí (encarar o luto talvez não seja o que mais queiramos fazer, nem a única coisa a ser feita, nem aquilo que somos obrigados a fazer). Talvez tenhamos subestimado nossas tentações. Pode ser que tenhamos nos distraído com uma analogia.

Sobre desistir

Adam Phillips
Trad. Breno Longhi
Ubu
160 páginas
Lançamento em 1 de maio

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