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Leandro Iamin


30 de janeiro de 2021

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Foto: Guto Seixas/Divulgação

O jornalista indica cinco livros sobre futebol que vão muito além do esporte

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É consenso que o futebol, no Brasil, enfrenta uma estranha dificuldade em penetrar certos ambientes de pesquisa acadêmica e produção literária. Embora seja uma manifestação fundamental na experiência civilizatória do brasileiro, a oferta de livros, filmes, exposições e outras atividades com temáticas futebolísticas não acompanha a popularidade do esporte, e isso impacta tanto a produção original quanto a importação de títulos. A grande biografia do nosso Doutor Sócrates, por exemplo, foi escrita em inglês, e quem quer ler em português precisa esperar a tradução. Da mesma forma, aguardar pela edição brasileira de um livro sobre Diego Maradona significa fazê-lo sentado ao longo dos anos.

Ainda assim, temos muita coisa boa, muita mesmo. Um ex-jogador como Tostão é capaz de fazer uma beleza como a coletânea de crônicas “A perfeição não existe”, enquanto craques como Alex possuem biografias interessantíssimas. Temos Nelson Rodrigues e Hilário Franco Junior em polos distintos de uma intelectualidade disposta a narrar a cronologia do jogo, e, na nova geração, figuras como Anderson Santos e Irlan Simões nos entregando visões críticas de um futebol contemporâneo, televisivo, capitalista, empresarial, que já é, também, história. O legado de Jorge Vasconcelos, Wilson Gambetta e outros para o registro histórico é imenso, e histórias para contar ainda sobram.

Separo abaixo cinco obras cujas leituras foram transformadoras.

Estrela solitária

Ruy Castro (Companhia das Letras, 1995)

Para Ruy Castro, só pode ser biografado quem morreu. Garrincha morreu mais de uma vez, e a biografia do gênio das pernas tortas conta todas elas. O futebol, que aconteceu para Garrincha sem esforço nem planejamento, é o toque colorido e mágico de sua trajetória, mas a apuração de Ruy Castro nos apresenta muito mais do que bola e campo. A obra é meticulosa na narração do definhamento que o álcool protagonizou na vida profissional, pública e íntima de Garrincha, e, ao mostrar seu jeito inconsequente e ingênuo de lidar com obrigações triviais da vida em sociedade, nos entrega um personagem sem igual. O casamento de Garrincha com Elza Soares, de quebra, é descrito no livro como um retrato de uma época. Afinal, Elza, artista em apogeu da carreira, foi perseguida pela opinião pública e literalmente apedrejada por supostamente ser a culpada pelo fim do casamento anterior de Garrincha.

Garrincha foi o desajustado original, e sua história, mesmo com duas Copas do Mundo vencidas, não é feliz. A sua biografia, no entanto, é um passeio saboroso pelo futebol, pela música e pela cidade do Rio de Janeiro em um tempo bonito. Sem Garrincha, entende-se pouco do futebol deste país.

O negro no futebol brasileiro

Mário Filho (Mauad X, 2010)

Mário Filho, figura central na intelectualidade futeboleira, traz histórias e personagens para retratar a trajetória do negro no futebol brasileiro — trajetória esta que refunda, molda e define a prática desse esporte no Brasil e a importância dele na construção do imaginário e na experiência civilizatória de um país que coincidiu o “fim” da escravidão com o nascimento de clubes importantes e a popularização do futebol.

Quando chegou ao Brasil, o “esporte inglês” era para a elite. O livro de Mário Filho então cimenta o entendimento de como nosso jogo se tornou, aos poucos, mais democrático e popular. Mais negro, portanto. São relatos de um Brasil nas décadas de 10 e 20 do século passado, tateando ainda sua nova realidade, oficialmente não-escravagista.

A obra conta tanto a história de Chico Guanabara, homem negro que se tornou segurança, faz-tudo e depois o primeiro torcedor de fato do Fluminense, quanto a trajetória de Friedenreich, nosso primeiro colossal artilheiro de seleção, e do Paulistano, também negro e a quem parte da sociedade torcia o nariz mesmo com tantos gols. Embora publicado originalmente em 1947, o livro ainda assusta pelas semelhanças com temas ainda pendentes no combate ao racismo no futebol e na sociedade que o cerca.

Jogo sujo – O mundo secreto da Fifa

Andrew Jennings (Trad. Renato Marques de Oliveira, Panda Books, 2011)

Eis um documento jornalístico arrebatador e incontestável sobre os movimentos corruptos da Fifa, entidade máxima do futebol mundial. Trata-se de uma apuração imensa, que remonta à década de 1970, cujo resultado chega a ameaçar nosso afeto puro pelo jogo, especialmente aquele entre seleções e disputado em Copas do Mundo. Tudo faz parte de um esquema colonizador da bola, relacionado a trocas de favores. Com parceiras empresariais muito potentes (a sócia mais leal atende por Adidas), a Fifa, notadamente a partir da gestão do brasileiro João Havelange, se transforma em um lugar onde mal existe a preocupação com as aparências. O livro, portanto, é uma bomba, cujos fragmentos atingem federações regionais, nacionais, presidentes locais, televisões, ex-jogadores, enfim: a história contemporânea do futebol não pode ser compreendida sem passar pelo trabalho de Jennings.

É um dos livros-reportagens mais robustos em termos de fontes, qualquer área considerada. O futebol também deve este tributo a “Jogo sujo”: é jornalismo em um nível estratosférico de competência e exatidão.

Futebol & guerra

Andy Dougan (Trad. Maria Inês Duque Estrada, Zahar, 2004)

O livro é a história do jogo de futebol mais absurdo e pesado de todos os tempos: FC Start contra Luftwaffe. O Start era composto por membros do popular Dínamo de Kiev, da Ucrânia, e o Luftwaffe era o time dos membros da força áerea dos nazistas, que ocupavam Kiev naquele 1943. O futebol estava, claro, suspenso por ali, mas os alemães insistiram por sua volta: a ideia era usar o jogo para transmitir uma falsa ideia de normalidade na cidade. Andy Dougan, então, descreve a trajetória pessoal e familiar de cada um dos jogadores do Dínamo de Kiev, em especial aqueles que tiveram que defender o Start nessas infames pelejas contra os nazistas — jogos que eram, naturalmente, recheados de ameaças, arbitragens comprometidas com a vitória dos alemães e muita violência. O “Jogo da Morte” tem desdobramentos angustiantes. Angustiantes, não: trágicos, terríveis. Apesar deles, foi uma forma do futebol se apresentar para a população de Kiev como uma possibilidade de resistência e de orgulho.

O futebol é um esporte que só funciona universalmente porque tem regras compreensíveis a todos, e seguidas com bastante disciplina. O autoritarismo sanguinário dos nazistas passou por cima das regras do jogo, e percebeu que, sem elas, o esporte perde sentido e valor. Real e simbolicamente, eles perderam.

1942 – O Palestra vai à guerra

Celso de Campos Junior (Realejo, 2012)

Celso de Campos Junior passou meses fuçando páginas esportivas de jornais do período da Segunda Guerra. Seu objetivo foi organizar uma documentação complexa. A cidade de São Paulo via um confronto inusitado entre colonos italianos — país alinhado ao horror nazista — e a ala xenófoba da sociedade de São Paulo. Entre outros clubes, o Palestra Itália precisou mudar de nome, e o livro se dedica a limpar exageros inflamantes, mas confirmar o impacto que isso teve inclusive em cidadãos comuns, pacíficos e civis que experimentaram meses de animosidade na cidade que escolheram para viver. O livro acaba sendo um retrato de uma cidade querendo participar do que não lhe pertencia — uma guerra a milhares de quilômetros de distância — e do envolvimento capenga dos paulistanos no conflito, que ajuda a compreender o aniquilamento de outras pequenas agremiações esportivas da cidade.

Entre propagandas difamatórias e uma animosidade sem sentido nem acertos, um campeonato estadual serve como pano de fundo do livro, e tem, no desfecho, o primeiro jogo (e o primeiro título) do Palestra Itália com o nome Palmeiras.

Leandro Iamin é jornalista, fundador e diretor de conteúdo do estúdio Central 3. Apresentador dos podcasts Meu Time de Botão, O Som das Torcidas, Pontapé, Muito Mais do que Futebol, Bundesliga no Ar e Trivela.

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