Trechos

‘Drogas: as histórias que não te contaram’

Ilona Szabó

23 de março de 2017(atualizado 28/12/2023 às 01h45)

O ‘Nexo’ publica trechos do novo livro de Ilona Szabó em parceria com Isabel Clemente. A publicação, dividida em duas partes, narra a história de cinco personagens e busca compreender abordagens e políticas mais humanas de outros países no combate às drogas

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Introdução

(…)

Precisamos, mais do que nunca, falar sobre drogas. Em muitos lares essa conversa é marcada pela desinformação, pelo temor de mães sobre violência policial contra seus filhos e por histórias de fracassos familiares na busca por tratamento para parentes com sérias dependências.

Como mãe, pretendo passar para minha filha a mensagem que considero a mais acertada: “Meu amor, a vida trará muitas sensações, e você não precisa de drogas para experimentá-las. Drogas trazem riscos e eu gostaria que você não se arriscasse. Estarei sempre disposta a conversar sobre esse assunto e te ajudar se precisar.” Pode ser que meu discurso funcione e dê tudo certo lá na frente. Que ela jamais se arrisque e encontre formas saudáveis de experimentar as emoções que uma vida comporta. Mas nossos filhos não vivem numa bolha. Eles conviverão com substâncias, lícitas e ilícitas, na escola, na rua, nas viagens.

(…)

Daniel

No Dia das Bruxas, máscaras de abóboras recortadas em cartolinas laranja formavam um varal no salão. As luzes apagadas permitiam que a iluminação de velas derretidas sobre pires acrescentasse um acabamento quase profissional ao faz de conta.

Na casa de dois andares, com fachada em cimento, telhado de zinco e um pequeno quintal, vivem vinte crianças e adolescentes. São meninas e meninos resgatados ou devolvidos por grupos armados ilegais, depois de anos servindo como escravos sexuais, cozinheiros, serviçais e combatentes.

Muitos deixaram de ser crianças em vários sentidos. Testemunharam e participaram de atrocidades. Cresceram sem referência familiar. Usaram drogas. Foram doutrinados para desrespeitar leis e, à margem da sociedade, obedecer a regras que cumpridas ou descumpridas poderiam custar-lhes a vida.

Crianças e adolescentes eram o lado mais frágil da guerra civil que atormentou a Colômbia por mais de meio século, em disputas que opunham grupos guerrilheiros, paramilitares e forças do Estado.

Esses pequenos ex-soldados poderiam estar presos, embrenhados na selva em acampamentos nômades ou mortos, mas, instalados em seu novo lar, numa das muitas ruas sem calçamento da periferia de Bogotá, trocaram armas por brinquedos, batalhas pela escola. Improvisaram fantasias de fantasmas, vampiros e bruxas para brincar de vencer o medo numa noite fria no final de outubro de 2006.

Neste novo cenário é difícil imaginar que as vidas ainda tão breves dessas crianças foram marcadas por episódios brutais.

Pode este novo ambiente rico em afeto e respeito curar os traumas de guerra? As crianças-soldado que montaram minas terrestres e lutaram como adultos são vítimas ou foram algozes? A história de Daniel e de milhares de outras crianças-soldado é uma complicada busca por respostas.

Franzino, Daniel aparenta menos idade do que seus dezessete anos de vida. Para a festa do Dia das Bruxas, arrumou um pano preto como capa e um batom vermelho para simular sangue nos lábios. Usou fécula de milho para empalidecer o rosto e surpreendeu ao desenhar um crucifixo no braço, um contraste inesperado num vampiro, avesso ao símbolo da cruz e tido como uma criatura do mal. Dois garotos mais fortes caíram na gargalhada.

“Sou um vampiro católico. Estou protegido! Já tentaram me matar várias vezes mas ainda estou aqui, porque, no fundo, sou do bem!”

Como parte da encenação, Daniel forja uma arma com os dedos e, em seguida, uma cruz. Se a bondade está na profundeza de sua alma, é graças às brincadeiras que ela começa a vir à tona. Ele não é imortal como gostaria, mas diverte seus colegas contando os muitos episódios de seu quase encontro com a morte.

Os colegas da escola ficam invariavelmente impressionados, até os que já passaram por algo parecido − porque é a maneira de Daniel contar histórias que faz a diferença. Como se ele enxergasse os acontecimentos por um ângulo inusitado.

“Fiquei parado atrás da árvore, escondido, e a morte, caolha, passou batido por mim!”, diz, sobre um dos tiroteios que enfrentou.

E foi quase isso o que aconteceu. Naquele dia, enquanto esperava a morte passar, Daniel resolveu checar se a bomba que explodira havia pouco era a mina que ele enterrara na véspera. Não era bom com armas mas aprendera a montar explosivos. Quando foi espionar, um tiro pegou de raspão sua testa. A cabeça ardeu e, da ferida, jorrou tanto sangue que até as águas do rio nas quais limpou o machucado foram tingidas de vermelho, exagera ele, para uma plateia de olhos arregalados, incrédula.

Seu inimigo naquele episódio sangrento na selva era o Exército colombiano, o mesmo ao qual cinco anos depois ele iria se entregar. De inimigo a aliado, o Exército teve papéis decisivos e contrários na vida do menino, uma ajuda e tanto para perceber cedo como pequenas escolhas podem influenciar o curso de uma história.

Qual Daniel prevaleceria: o que participou de batalhas armadas na selva ou o que em ato de desespero e coragem fugiu e pediu ajuda tempos depois?

Atingido na cabeça, Daniel ficou fora de combate por uma semana e, enquanto se recuperava, na enfermaria dos guerrilheiros, caiu nas graças de um dos comandantes da frente onde servia. Foi transferido para a tenda preta, na qual só o líder dormia, com a desculpa de que ali seria mais bem cuidado. Antes de chegar lá, porém, urinou na maca. Ele tinha apenas doze anos. Sobre essa história, Daniel se cala.

Filho mais velho de cinco irmãos, Daniel nasceu e cresceu numa zona agrícola, entre a selva amazônica e a planície colombiana, para onde seus avós se mudaram nos anos 1960. Como as demais famílias, vieram estimulados por governos que falavam em povoar os vazios do país e levar até lá estradas, escolas e hospitais. O povo acreditou e foi viver na nova fronteira. Já as promessas não foram cumpridas.

Esquecida pelo poder público, a região se converteu em um centro de disputas sangrentas por terras sem dono e em um dos muitos territórios dominados pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc − grupo armado que esteve em conflito com o governo colombiano por mais de meio século e para o qual Daniel foi entregue pela família aos onze anos de idade.

As Farc, que assinaram um acordo de paz com o governo da Colômbia em 2016, ambicionavam tomar o poder e usavam métodos violentos em sua campanha, incluindo sequestros. Contam-se milhares de vítimas ao longo de cerca de trinta anos, uma realidade que Daniel conheceria na prática. Além dos sequestros, a cadeia de produção ilegal da cocaína se tornou uma das principais fontes de financiamento dos guerrilheiros e movimenta ainda hoje uma economia que é o único sustento viável de famílias abandonadas à própria sorte, como a de Daniel.

Na maior parte dos casos, essas famílias se envolvem com o cultivo da folha de coca, planta para a qual nunca faltam compradores – violentos, ilegais e armados, mas que pagam pela mercadoria. Pouco, mas pagam.

O cultivo de folha de coca não enriquece ninguém, apesar de ser o primeiro elo da lucrativa cadeia de produção, venda e consumo da cocaína. “Ele alivia a vida da gente”, dizia o pai de Daniel, que antes de ser cocalero tentou plantar pêssegos e abacaxis, assim como fizeram seus pais. Insistiu nisso porque era teimoso, na opinião da mulher, que, como ele, não estudou. O orgulho, mais do que qualquer informação, o obrigou a tentar o que podia para sobreviver antes de se submeter à lei do silêncio e ao jogo sujo dos grupos armados.

Ilona Szabóé especialista em segurança pública e políticas de drogas. Co- fundadora e diretora-executiva do Instituto Igarapé, foi secretária-executiva da Comissão Global de Políticas sobre Drogas entre 2011 e 2016. Ativista e empreendedora de renome internacional, participou da criação de diversas redes de novas lideranças, como a Pense Livre e o Movimento Agora!. Foi palestrante no TEDGlobal, no Rio de Janeiro, e nomeada Jovem Líder Global do Fórum Econômico Mundial. É pesquisadora e corroteirista do documentário sobre drogas “Quebrando o tabu”, assistido por milhares de pessoas no mundo todo.

Isabel Clementeé escritora e jornalista. Foi editora da revista “Época’, onde trabalhou por 12 anos, editora-assistente do “Jornal do Brasil”, e repórter e correspondente da “Folha de S.Paulo” em Londres.

Drogas: as histórias que não te contaram

Ilona Szabó em parceria com Isabel Clemente
Prefácio de Drauzio Varella
Editora Zahar
200 páginas
Lançamento previsto para março

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