Expresso

O que é ficção especulativa. E como ela cresce no Brasil

Cesar Gaglioni

08 de setembro de 2019(atualizado 28/12/2023 às 12h26)

Gênero que abraça fantasia, ficção científica e terror vem ocupando espaço no mercado do país, com títulos estrangeiros e de autores nacionais

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FOTO: REPRODUÇÃO/YOUTUBE

A fantasia nacional “Ordem Vermelha” foi um dos livros mais vendidos de 2017. O romance foi escrito pelo autor Felipe Castilho, em parceria com o evento Comic Con Experience

A ficção especulativa é um guarda-chuva que abraça, em um só termo, os gêneros de fantasia, ficção científica e terror, bem como seus subgêneros.

A expressão apareceu pela primeira vez em 1887, em um texto editorial da revista americana Lippincott’s Monthly. Porém, ela se popularizou apenas no século 20 , quando o autor de ficção científica Robert A. Heinlein (de “Estranho numa terra estranha”) usou o termo em um artigo da revista americana The Saturday Evening Post.

Alguns dos subgêneros abraçados pela ficção especulativa são:

  • Sobrenatural: subgênero do terror que traz criaturas e seres do mundo sobrenatural para o mundo real, como “O Exorcista”, de William Peter Blatty e “A Mansão da Casa da Colina”, de Shirley Jackson
  • História alternativa: subgênero da ficção científica em que fatos históricos são reescritos, traçando um cenário imaginário. “O Homem do Castelo Alto”, de Philip K. Dick, imagina como seria o mundo se os nazistas e o Japão tivessem vencido a Segunda Guerra Mundial
  • Utopia e distopia: subgêneros da fantasia e da ficção científica que imaginam mundos ideais (utopia) e cenários catastróficos (ficção científica), como “A Ilha”, utopia de Aldous Huxley e “Jogos Vorazes”, distopia de Suzanne Collins

A popularidade no Brasil

No Brasil, os livros de ficção especulativa estão crescendo no mercado editorial.

Na lista parcial das 20 obras mais vendidas de 2019 , sete títulos de ficção especulativa aparecem, incluindo “O Conto da Aia”, da americana Margaret Atwood e “1984”, distopia escrita pelo britânico George Orwell em 1948.

Em 2017 , oito dos 30 livros de ficção mais vendidos no Brasil se encaixavam dentro da ficção especulativa. Dentre os títulos, estavam “Caixa de Pássaros” e “Piano Vermelho”, do americano Josh Malerman, “Mitologia Nórdica”, do britânico Neil Gaiman e “Ordem Vermelha”, do brasileiro Felipe Castilho.

A editora Aleph, especializada no lançamento de clássicos da ficção científica, existe desde 1984, mas ganhou um fôlego maior nos últimos anos: entre 2013 e 2014, a empresa viu seu faturamento crescer em 98% .

Com passagens pelas editoras Aleph, Leya e Intrínseca, o historiador Daniel Lameira é hoje publisher da Antofágica, casa editorial que relança livros clássicos com um acabamento direcionado ao público jovem.

Para Lameira, a base de leitores de ficção especulativa no Brasil cresceu por conta da popularização no gênero na cultura pop mundial. “É algo que veio por outras mídias que não necessariamente a leitura. Em parte é um público que veio de ‘Harry Potter’, mas muito de filmes e jogos”, afirmou aoNexo.

Na visão do autor Felipe Castilho, o consumo de ficção especulativa no país também vem deixando de focar somente em obras originalmente anglófonas e passou a abraçar livros vindos de outros lugares. “Hoje a gente vê grandes movimentos, com gente querendo ver uma nova fantasia que vem da Coreia do Sul, de países da África, da América Latina. Deixou de ser uma coisa que vem exclusivamente da rota Hollywood-Brasil ou Inglaterra-Brasil”, disse o autor aoNexo.

Os autores nacionais do gênero

Na primeira década dos anos 2000, surgiram nomes como os paulistas André Vianco (de “Os Sete”) e Carolina Munhóz (de “O Inverno das Fadas”), e os cariocas Raphael Draccon (de “Dragões de Éter”) e Eduardo Spohr (de “A Batalha do Apocalipse”), que se tornaram figuras do mainstream da ficção especulativa brasileira .

Desde 2010, iniciou-se um movimento de criação de publicações independentes especializadas no lançamento de histórias de ficção especulativa. É o caso da Trasgo e da Mafagafo , revistas digitais que publicam contos de fantasia e ficção científica escritos por autores nacionais.

“Normalmente os movimentos literários são um resposta do outro, então muita gente que cresceu assistindo filmes de ficção científica, de fantasia, lendo ‘Harry Potter’ ou os livros de Neil Gaiman, jogando videogame e assistindo ‘Star Wars’ cresceu com interesse nessas coisas e agora, chegando na maturidade criativa, começam a replicar isso em seus livros”, disse Lameira.

Fábio M. Barreto, autor de ficção especulativa e professor de escrita criativa, aponta que sempre houve escritores trabalhando dentro desses gêneros, mas eles se mantinham restritos a pequenos nichos e publicações independentes.

“A gente sempre teve autores, mas agora também temos consumo”, afirmou Barreto aoNexo. “O mercado não estava consolidado. Hoje temos uma galera mais nova que chegou preparada para entrar nesse jogo. É uma galera que tem podcasts, que tem presença no Instagram, que está sempre em eventos literários como a Casa Fantástica da Flip, eles têm uma proximidade com o público, estão escrevendo para o público e o público quer tudo isso”, acrescentou.

Barreto também nota que, em anos mais recentes, houve aumento da diversidade dos autores de ficção especulativa, com mais mulheres se aventurando na escrita do gênero. Ele cita nomes como Jana P. Bianchi (de “Lobo de Rua”) e Paola Siviero, vencedora do troféu de Melhor Romance Nacional de Fantasia, Ficção Científica e Terror pelo prêmio LeBlanc 2019 , com “O Auto da Maga Josefa”.

De acordo com Castilho, a ficção especulativa produzida  fora do eixo Estados Unidos-Reino Unido tem um ritmo diferente e incorpora elementos das próprias culturas de cada país. “Isso se reflete na ficção especulativa produzida no Brasil”, afirmou. “Quando ela não bebe só das referências européias e americanas a gente têm outros dramas. O Brasil é diverso, e tem outras raízes, e isso enriquece a ficção especulativa enquanto tema”, acrescentou.

Em “O Auto da Maga Josefa”, Paola Siviero cria uma trama repleta de fantasmas, demônios e vampiros no Nordeste brasileiro, aproveitando parte da cultura local para sua narrativa.  No livro “A Batalha do Apocalipse”, de Eduardo Spohr, um confronto angelical acontece nas ruas do Rio de Janeiro, trazendo elementos do cotidiano carioca para o desenrolar da trama.

O preconceito com a ficção especulativa

Apesar da popularidade entre leitores, Lameira enxerga que ainda há preconceito com os gêneros que fazem parte da ficção especulativa dentro do próprio mercado editorial.

“Eu acho que isso vem por boa parte dos editores não consumirem necessariamente esse tipo de literatura. Claro, tivemos muitas exceções importantes na história, mas mais recentemente, com a DarkSide publicando terror, com a Aleph publicando ficção científica, com alguns esforços na fantasia, isso começou a mudar”, disse.

Em texto publicado em 2015 no site PublishNews, Silvio Alexandre, criador do Simpósio de Literatura Fantástica, afirma que o preconceito com o gênero ainda existe, citando uma fala da autora Ruth Rocha daquele ano em que ela afirma que “Harry Potter não é literatura, é uma besteira” .

Para Alexandre, editoras como a DarkSide e a Aleph são bons exemplos desse novo momento. Ele cita também o selo Seguinte, da Companhia das Letras, criado em 2012 para a publicação de livros direcionados ao público jovem , que traz títulos dentro da ficção especulativa como a fantasia “A Rainha Vermelha”, da americana Victoria Aveyard e a distopia “Ninguém Nasce Herói”, do brasileiro Eric Novello.

Barreto diz acreditar que “nem todo livro é para todo público e que nem todo público é para todo livro”. Para ele, criou-se em alguns lugares a ideia de que a ficção especulativa se resume a escapismo e que todo escapismo é ruim.

“É claro que a gente tem que tentar transmitir valores e ideias por meio da escrita”, disse. “Mas no fim das contas, estamos contando histórias. Essas histórias podem se passar em universos fantásticos, mas muitas vezes elas transmitem valores. ‘Harry Potter’ é uma fantasia sobre bruxos, mas fala sobre o valor da amizade”, acrescentou. “E ‘Harry Potter’ mudou o mundo, mudou o jeito como as editoras trabalham e formou gerações”, concluiu.

Embora Castilho acredite que esse tipo de preconceito esteja ficando para trás, ele considera que há duas possíveis causas para a existência dele: “Às vezes esses editores estão olhando para o lugar errado, para um escritor ruim de literatura fantástica. E também tem uma parte do mercado que é mais conservadora e se recusa a entender o leitor de hoje. Essas pessoas vão acabar perdendo espaço”, afirmou o autor.

Parte do cânone da literatura brasileira

Apesar de hoje estar associada à cultura pop dos tempos contemporâneos, alguns autores clássicos brasileiros, que integram o cânone da literatura nacional, escreveram histórias com elementos de ficção especulativa.

Em 2019, a editora DarkSide lançou a coletânea “Medo Imortal”, que compila contos e poemas com elementos de terror escritos por autores que integram o quadro dos Imortais da Academia Brasileira de Letras. Dentre os autores estão Machado de Assis, Fagundes Varela e Aluísio Azevedo.

De acordo com Lameira, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis,  tem toques de ficção especulativa, mesmo sendo considerado o nascimento do movimento realista no Brasil. “Tem um quê de especulativo em Brás Cubas, o fato da história ser contada por um defunto autor é algo que dá para considerar especulativo, na minha visão”, disse.

Para o autor Bráulio Tavares, há diversos elementos de fantasia e ficção científica na obra do autor mineiro João Guimarães Rosa. No livro “A pulp fiction de Guimarães Rosa”, Tavares argumenta que há semelhanças entre Rosa e J.R.R. Tolkien , o autor de “O Senhor dos Anéis”.

“Apesar das evidentes diferenças, os dois escritores tinham em comum uma porção de elementos: a visão épica, a erudição, o interesse pela linguagem. Além disso, pode-se dizer que o projeto literário de ambos partia do mesmo gesto: a tentativa de fundar uma região mítica (Middle-earth, o Sertão) recriada com rigor cartográfico, e que serviria de cenário para as batalhas cósmicas entre o Bem e o Mal”, escreveu Tavares.

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