Expresso

2 iniciativas de deslocamento de crianças para a escola e o que elas dizem sobre direito à cidade

Ana Luísa Andrade e Mayara Paixão

08 de janeiro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 23h36)

Projetos no Brasil e na Colômbia incentivam a mobilidade ativa de estudantes e trazem benefícios para a saúde e a cidadania

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FOTO: FACEBOOK CARONA A PÉ/REPRODUÇÃO

quatro crianças seguem homem adulto atravessando a rua na faixa de pedestres

Projeto busca transformar o caminho até a escola em experiência de conhecer a cidade junto com amigos

Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab 99+Nexo de Jornalismo Digital, com o tema “A cidade como pauta: desafios e soluções de mobilidade urbana”, realizado na redação do Nexo, em outubro de 2019.

Apenas nas áreas urbanas, as crianças (entre 0 e 12 anos, tal como define o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente) representam cerca de 19,7% do total da população, segundo o Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A presença massiva desses pequenos cidadãos traz a reflexão sobre como as crianças ocupam e se apropriam do espaço das cidades. Estudos têm demonstrado que a forma como elas vivenciam o sistema urbano e transitam pelas ruas de seu território tem influência no sentimento de pertencimento e até na saúde física e mental.

Especialistas em mobilidade urbana têm chamado atenção para a mobilidade ativa infantil, quando crianças andam a pé ou de bicicleta. A modalidade tem ganhado protagonismo por apresentar uma série de benefícios.

Em Bogotá, na Colômbia, e em duas cidades brasileiras — São Paulo e Belo Horizonte — experiências idealizadas para incentivar essa prática durante o percurso para a escola mostram como ela pode impactar o dia a dia das crianças.

De bicicleta para a escola

Desde 2014, quem caminha pelas ruas de Bogotá um pouco antes do horário de início das aulas pode cruzar com caravanas de crianças de coletes amarelos indo juntas para a escola de bicicleta. Elas são participantes do projeto “Al Colegio en Bici” (em português, “Para o colégio de bicicleta”).

A capital e maior cidade da Colômbia, com pouco mais de 7 milhões de habitantes, é palco de um caso pioneiro de mobilidade ativa infantil na América Latina. No ano de 2012, por iniciativa da Secretaria de Educação de Bogotá, mais de 4,5 mil bicicletas foram compradas para serem usadas pelas crianças mediante autorização dos pais.

Depois de treinamento, que capacitou os estudantes para andar e cuidar de suas próprias bicicletas, e de melhorias na infraestrutura urbana, em 2014 eles passaram a ir para o colégio juntos. Cada caravana conta com cerca de 25 crianças e é acompanhada por quatro instrutores.

A experiência foi favorecida pelo fato de 80% das escolas públicas da capital estarem a, no máximo, um quilômetro de distância de uma rede de ciclovias.

Em entrevista ao Nexo , o arquiteto colombiano Carlos Mario Restrepo, que participou da implementação do projeto como coordenador técnico, conta que mais de 15 mil crianças de 200 escolas públicas já foram beneficiadas em 12 das 20 localidades de Bogotá.

Restrepo afirma que o projeto proporcionou aos estudantes conhecer partes da cidade que antes não conheciam. “A escala de cidade das crianças mudou. Estamos falando de crianças muito mais empoderadas.”

Os estudantes também participaram ativamente da construção das rotas que acreditavam ser mais seguras para realizar seus trajetos de ida à escola.

O arquiteto afirma que o projeto é repleto de virtudes para os pequenos colombianos. “As crianças começam a recuperar o espaço público que tinham perdido, além de fazerem atividade física todos os dias.”

FOTO: SECRETARÍA DE EDUCACIÓN DEL DISTRITO CAPITAL BOGOTÁ

grupo crianças de coletes amarelos andando de bicicleta

Iniciativa na Colômbia agrupa crianças e instrutores em caravanas de bicicletas

Ainda de acordo com Restrepo, as famílias também são beneficiadas, uma vez que os pais ganham mais tempo para outras atividades por não terem que levar as crianças ao colégio.

Em São Paulo e Belo Horizonte

No Brasil, alguns projetos semelhantes estão sendo desenvolvidos a partir de iniciativas independentes. Um deles é o “ Carona a Pé ”, que surgiu em 2015, a partir da ideia da professora de uma escola na região central de São Paulo.

Percorrendo o caminho de casa para o trabalho sempre a pé, ela percebeu que vários alunos da escola faziam o mesmo trajeto acompanhados dos pais, e por isso teve a ideia de passar a acompanhá-los.

Bem recebida pela escola, crianças, mães e pais, a proposta era “transformar esse caminho do ‘ir até a escola’ em uma coisa mais bacana de estar junto com os amigos, de conversar, de conhecer a cidade”. É o que afirma Renata Morettin, arquiteta e urbanista e uma das três fundadoras do “Carona a Pé”.

O que começou com uma rota, da qual faziam parte dois adultos e sete crianças, hoje já beneficia alunos de cinco escolas privadas de São Paulo e outras oito escolas públicas de Belo Horizonte. De acordo com Morettin, a taxa de adesão e permanência de crianças no projeto é de 25 a 30% em todas elas.

Em busca de avanços, o “Carona a Pé” tem procurado dialogar com o poder público. Em Belo Horizonte, órgãos de trânsito vêm investigando que melhorias podem ser feitas no entorno das escolas beneficiadas pelo projeto. Já em São Paulo, foi possível implementar uma faixa de pedestre em frente à escola onde o projeto teve início.

Segundo Morettin, entre outros benefícios identificados nas escolas estão a diminuição da evasão escolar e o incentivo à pontualidade e à responsabilidade dos alunos. “As crianças não atrasam, elas têm um compromisso, isso em todas as escolas, em todos os lugares pelos quais a gente passou”, conta.

Outro grande benefício proporcionado pelo Carona a Pé é o reconhecimento da criança como cidadã. De acordo com a arquiteta, “as crianças começam a aparecer na cidade”. Por meio das caminhadas, elas passam a prestar atenção ao meio urbano, observando elementos que antes não notavam naquele ambiente. “A gente fala para os condutores estimularem essa vivência deles pela cidade”, acrescenta.

As crianças também passam a prestar maior atenção ao trânsito, percebendo o funcionamento e falhas e demonstrando, inclusive, insatisfações com sistema. “São crianças que, se forem motoristas, serão motoristas muito mais conscientes”, afirma Morettin.

O que dizem especialistas

Para explicar melhor de que forma essas e outras iniciativas podem modificar o dia a dia das crianças, o Nexo conversou com duas especialistas no tema:

— A arquiteta e urbanista Irene Quintáns, fundadora da Rede Ocara , projeto que teve início em 2013 e reúne iniciativas de mobilidade e espaço urbano com crianças na América Latina.

— A gestora ambiental Silvia Stuchi, idealizadora da organização Corrida Amiga , que desde 2014 promove iniciativas de mobilidade ativa e desde 2016 beneficia crianças de oito escolas públicas de São Paulo.

Segundo as pesquisadoras, a mobilidade ativa infantil é fundamental para a saúde e desenvolvimento da criança. Caminhar e experimentar as cidades mais ativamente cria meninos e meninas com maior consciência cívica e disposição para se envolver com as transformações de seu território. De acordo com as especialistas, a mobilidade ativa para as crianças traz benefícios e questões:

Pertencimento e cidadania

O Prêmio Nobel de Medicina de 2014 foi dado a três pesquisadores que descobriram como o cérebro humano consegue se localizar e se deslocar em determinado espaço, estudo que ficou popularmente conhecido como “GPS Cerebral”.

Referindo-se à experiência, Quintáns explica que, ao percorrer um trajeto, o cérebro humano absorve referências, criando uma espécie de “mapa mental” pelo qual o indivíduo consegue se orientar. E essa situação não é diferente com as crianças.

Caminhar pela cidade permite que a criança entre diretamente em contato com os espaços por onde passa e ganhe referências para a formação do mapa mental daquele ambiente. Silvia Stuchi complementa, e afirma que crianças que se deslocam dessa forma possuem um melhor senso de espaço.

Já crianças que se locomovem por meios motorizados encontram maior dificuldade em apresentar essa habilidade, uma vez que seus trajetos são realizados de ambientes fechados para ambientes fechados, isolados do meio urbano. “Você pega a perua escolar, pega o carro, e já entra em uma outra bolha”, reflete Stuchi.

O desenvolvimento desse mapa mental incentiva a criação da sensação de pertencimento à cidade, como explica Quintáns. “Se você não consegue ter um mapa mental, significa que você não se sente pertencente a esse lugar, ou que esse lugar não pertence a você”.

De acordo com a arquiteta, a forma como a criança se desloca pela cidade influencia também na formação de uma consciência cívica. “Você não vai aprender a ser cidadão em um livro”, defende.

Silvia Stuchi também acredita que a cidadania ativa deve ser estimulada desde cedo por meio de caminhadas pelo meio urbano. “Se tem problema e a cidade pode ser melhor, como que a gente pode fazer para ajudar? E a criança pega isso muito rápido.”

De acordo com Quintáns, além de não desenvolver a sensação de pertencimento e cidadania, a criança que não convive com a cidade acaba não utilizando o espaço público, perdendo possibilidades de socialização e interações diferenciadas.

“Se você está em um condomínio, você vê pessoas que são de um padrão econômico semelhante ao seu. Quando você vai a um parque público, você brinca com as crianças que estão lá, podem ser mais ricas ou mais pobres, mas brinca com quem está lá”, exemplifica a arquiteta.

Ela acrescenta que, para o desenvolvimento de projetos de mobilidade ativa infantil, é preciso um “pacote de medidas”, que envolve o engajamento social, e, principalmente, políticas públicas.

Benefícios para a saúde

Juntamente à má alimentação, a inatividade física é apontada por pesquisas em todo o mundo como uma das principais causas da obesidade e sedentarismo em crianças e jovens . No Brasil, a região Sudeste é pioneira no excesso de peso infantil, com 38,8% de suas crianças nesse quadro. Na sequência estão as regiões Sul (35,9%), Centro-Oeste (35,15%), Nordeste (28,15%) e Norte (25,75%). Os dados são da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica .

Caminhar a pé ou andar de bicicleta também traz benefícios à saúde na infância. A mobilidade ativa infantil faz com que o exercício físico se torne parte constante da rotina das crianças.

Desigualdade

Irene Quintáns chama atenção para diferenças que atuam na mobilidade de meninas e meninos. Desigualdades urbanas fazem com que crianças que vivem nas periferias e aquelas que vivem no centro, mesmo se pertencerem ao mesmo município, vivam cidades diferentes. E elas podem desenvolver relações distintas com seus territórios, segundo a arquiteta.

Nos bairros de maior renda, as famílias tendem a sair motorizadas para a escola. Já em bairros periféricos, a mobilidade a pé é privilegiada.

Apesar de vivenciarem mais a mobilidade ativa infantil, as famílias da periferia são mais impactadas quando a questão são problemas na urbanização e falta de estrutura: calçadas com buracos, menos semáforos, poucos espaços verdes e aparelhos culturais.

Segundo Quintáns, isso mostra que somente a mobilidade ativa não é suficiente para garantir o direito à cidade. “O trajeto tem que ser seguro, confortável, interessante e saudável”, afirma.

Edição Marina Menezes

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