O que influi nas discussões sobre dieta saudável no Brasil
Juliana Sayuri
24 de setembro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 23h29)Nota técnica do Ministério da Agricultura sugeria mudanças no Guia Alimentar para a População Brasileira, numa tentativa de reabilitar produtos ultraprocessados. Sob pressão, Tereza Cristina pediu alterações
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Nutricionistas criticaram nota do Ministério da Agricultura para modificação do Guia Alimentar
Uma nota técnica do Ministério da Agricultura, revelada neste mês de setembro pelo jornal O Globo, tentou reabilitar alimentos ultraprocessados, sugerindo mudanças em trechos referentes a produtos industrializados no Guia Alimentar para a População Brasileira . A reação foi grande. Trinta e três cientistas de centros internacionais de pesquisa endereçaram então uma carta à ministra Tereza Cristina.
“A associação entre o consumo de alimentos ultraprocessados e sobrepeso e obesidade, diabetes, hipertensão, dislipidemias [colesterol alto], doenças cardiovasculares, AVCs, câncer de mama, depressão, fragilidade em idosos e mortalidade em geral foi demonstrada em estudos longitudinais cuidadosos conduzidos em grandes amostras de indivíduos em diferentes países, incluindo EUA, Reino Unido, Espanha e França, além do Brasil ”, dizia a carta, enviada na quarta-feira (23).
A relação entre o alto consumo de alimentos ultraprocessados e o aumento acentuado no ganho de calorias e na gordura corporal, que pode levar à obesidade e outras complicações, foi um dos argumentos mais citados para criticar as alterações no guia sugeridas inicialmente pelo Ministério da Agricultura ao Ministério da Saúde. Na quinta-feira (24), o jornal Folha de S.Paulo revelou que Tereza Cristina determinou a reformulação da nota técnica .
Em meio ao vaivém, o debate sobre a qualidade da alimentação do brasileiro voltou à arena pública. O que é alimentação adequada e saudável? Por que é uma questão de saúde? E qual é o lugar da obesidade nessas discussões?
“Este guia oferece recomendações para promover a alimentação adequada e saudável e, nessa medida, acelerar o declínio da desnutrição e reverter as tendências desfavoráveis de aumento da obesidade e de outras doenças crônicas relacionadas à alimentação”
Acesso à alimentação é um direito humano, contemplado no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos , no artigo 11 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e, no Brasil, no artigo 6º da Constituição Federal .
Publicado pela primeira vez em 2006, o Guia Alimentar parte dos pressupostos dos direitos à saúde e à alimentação adequada e saudável. O documento indica dez passos nessa direção:
Alimentar-se não é simplesmente sinônimo de “comer”. Na interpretação do guia, alimentação se refere à ingestão de nutrientes, “mas também aos alimentos que contêm e fornecem os nutrientes, a como alimentos são combinados entre si e preparados, a características do modo de comer e às dimensões culturais e sociais das práticas alimentares”.
O consumo excessivo de produtos ultraprocessados não é recomendado nutricionalmente , escreveu a cientista Alicia Kowaltowski, em sua coluna no Nexo . “Abusamos do consumo de calorias quando consumimos produtos ultraprocessados, e tendemos a engordar e ter as consequências pouco saudáveis associadas a dietas ricas em açúcares e gorduras.”
Atualmente, condições associadas à alimentação, como doenças cardiovasculares, diabetes e câncer, são consideradas questões de saúde pública mundiais. Isto é, hábitos alimentares têm impacto na saúde.
Em abril, o portal Saúde Brasil, projeto do Ministério da Saúde, publicou uma nota destacando a importância da alimentação adequada e saudável para o fortalecimento do sistema imunológico, o que é importante diante da pandemia.
“Alimentos in natura, como frutas, legumes, verduras, grãos diversos, oleaginosas, tubérculos, raízes, carnes e ovos, são saudáveis e excelentes fontes de fibras, de vitaminas, minerais e de vários compostos que são essenciais para a manutenção da saúde e a prevenção de muitas doenças. Inclusive aquelas que aumentam o risco de complicações do coronavírus, como diabetes, hipertensão e obesidade”, diz o texto.
Na época, o Ministério de Saúde publicou um boletim que indicava uma tendência das mortes por covid-19 no país, identificando a obesidade como fator de risco .
“Mas muito antes do surgimento da pandemia, a obesidade já vinha sendo uma preocupação no país. Segundo a Pesquisa de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), de 2018, do Ministério da Saúde, a prevalência da obesidade voltou a crescer no Brasil [ desde 2006], principalmente entre os adultos de 25 a 34 anos e 35 a 44 anos, com 84,2% e 81,1% , respectivamente”, destacou o projeto Saúde Brasil, em maio.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), doença é uma condição que gera alterações funcional, estrutural ou comportamental no organismo. Incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID) em 1990, a obesidade é considerada uma doença crônica que, segundo a OMS, se tornou uma epidemia global .
Em relatório de 2000, o órgão internacional define a obesidade como um acúmulo anormal ou excessivo de gordura corporal que pode atingir graus capazes de afetar a saúde. O critério utilizado para avaliar e classificar a obesidade é o IMC (Índice de Massa Corporal), calculado a partir do peso e da altura. Há três estágios:
A obesidade pode ser provocada por má alimentação e sedentarismo, mas também por questões genéticas e alterações hormonais. Segundo dados do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), 40% a 60% dos obesos têm a doença por origem genética.
“Se partirmos do ponto de que a obesidade é uma doença, então qualquer pessoa obesa deveria ter acesso a tratamento gratuito , com uma equipe interdisciplinar. […] Mas se a obesidade é uma doença, por que ela ainda é tão desrespeitada na sociedade? Talvez, o melhor seja considerarmos a obesidade como uma condição”, disse o nutricionista Erick Cuzziol, em relato à BBC News Brasil, em janeiro de 2020.
Recentemente, discussões sobre a classificação da obesidade como doença marcaram as redes sociais – principalmente no fim de julho, após a chef argentina Paola Carosella criticar itens industrializados (especificamente um tipo de nugget de frango feito em impressora 3D) e citar, como complicações, hipertensão e obesidade.
Por um lado, frisou-se a importância de não confundir aceitação do corpo e romantização da obesidade a ponto de desconsiderar seus possíveis riscos à saúde.
Por outro, destacou-se que gordos e obesos sãoestigmatizados e se tornam alvo de preconceito (a gordofobia ), defendendo-se a “ despatologização ”, ou seja, não tratar o corpo gordo como inevitavelmente doente e avaliar a necessidade de recomendações de perda de peso.
“Existem situações isoladas de pessoas acima do peso que não apresentam quaisquer outras alterações clínicas que caracterizem uma doença, ou seja, não há necessidade de tratamento ”, afirmou Marcel Higa Kaio, coordenador do Programa de Atendimento aos Transtornos Alimentares da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em entrevista ao Nexo , em agosto de 2019.
Apesar das discordâncias, as discussões indicam que é importante considerar que o consumo excessivo de certos alimentos pode ser prejudicial para todos, não só para pessoas gordas – o que ficou mais evidente agora, nas diversas manifestações de defesa do Guia Alimentar.
Isso aponta para a necessidade de políticas públicas para prevenção e controle da obesidade, embasadas emestudos sobre os efeitos dos alimentos ultraprocessados no corpo . “Quando se fala em ações de políticas públicas [de saúde], é muito importante descobrir as causas das doenças, exatamente para poder pensar em ações que interfiram na causa correta”, disse a nutricionista Maria Laura da Costa Louzada, também professora da Unifesp, em entrevista ao Nexo , em junho de 2019.
Uma iniciativa que busca mapear os padrões alimentares no Brasil é um estudo conduzido pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, que pretende acompanhar a alimentação e o estado de saúde de 200 mil brasileiros ao longo da década (de 2020 a 2030). Com os resultados em mão, os pesquisadores esperam entender qual é a relação entre esses padrões e a ocorrência de obesidade, diabetes, hipertensão, colesterol elevado, doenças cardiovasculares e vários tipos de câncer.
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