Como a Anvisa se descolou de Bolsonaro na pandemia
Estêvão Bertoni
20 de dezembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h34)Dirigida por nomes escolhidos pelo presidente, agência inicialmente levantou dúvidas sobre uma eventual adesão ao negacionismo, mas agora é elogiada por rigor em medidas contra a covid-19
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O diretor-presidente da Anvisa, Barra Torres, antes de ser ouvido pela CPI da Covid, no Senado
O aval dado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) à vacinação de crianças de 5 a 11 anos de idade, em meados de dezembro, acirrou as tensões com o presidente Jair Bolsonaro, que ameaçou expor os nomes dos técnicos que tomaram a decisão. Desde outubro, funcionários do órgão vêm sofrendo ameaças de morte de bolsonaristas que se dizem contrários à imunização.
Responsável por promover a proteção da saúde da população por meio do controle de produtos e serviços, a Anvisa tem sido elogiada pela comunidade científica por causa de seu rigor técnico e de seus posicionamentos desde que as vacinas contra a covid-19 começaram a ser disponibilizadas, em janeiro de 2021.
Mas nem sempre foi assim. Em 2020, no começo da pandemia, a agência chegou a ser vista com desconfiança pela possibilidade de aparelhamento e de interferências do presidente em suas decisões.
Neste texto, o Nexo lembra como a atuação de seus diretores alinhada ao presidente criou inicialmente o temor de que o enfrentamento ao vírus poderia ser prejudicado, o que não se comprovou, e quais atos esgarçaram recentemente o relacionamento entre o órgão e Bolsonaro.
A Anvisa foi criada em 1999 , no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), com o objetivo de fiscalizar locais e processos de produção, além de insumos e tecnologias usados, e fazer o controle em “portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados”. Ela é responsável por avaliar, entre outros, medicamentos, alimentos, cosméticos, produtos de limpeza, sangue e hemoderivados, órgãos e tecidos humanos para uso em transplantes, produtos radioativos utilizados em diagnóstico e terapia, cigarros e qualquer outro produto que envolva a possibilidade de risco à saúde.
Sua diretoria colegiada é composta de cinco membros indicados pelo presidente da República e nomeados após aprovação no Senado para um mandato de cinco anos. Dos atuais diretores, quatro foram indicados por Bolsonaro e aprovados em outubro de 2020 pelo Senado.
Para uma das direções, o presidente chegou a indicar o coronel da reserva Jorge Luiz Kormann, mas voltou atrás após resistências — inclusive internas — a seu nome. Havia o temor que ele ficasse responsável pela área que toma decisões sobre o desenvolvimento de vacinas.
Atual diretor-presidente da agência, o contra-almirante da Marinha Antonio Barra Torres, que é médico com atuação num hospital naval, era apontado como amigo íntimo do presidente. Por ter um mandato fixo, ele ficará no cargo até o final de 2024.
Outra diretora, Cristiane Rose Jourdan Gomes, que é médica e bacharel em direito, já chegou a usar suas redes sociais para divulgar links para textos que defendem o uso da hidroxicloroquina , medicamento difundido por Bolsonaro contra a covid-19, mas que não tem efeito contra a doença.
No início da pandemia, a atuação de Barra Torres levantou suspeitas de que Bolsonaro conseguiria impor suas vontades ao órgão. Em março de 2020, o diretor-presidente da Anvisa participou ao lado do presidente de atos pró-governo em Brasília, sem usar máscara de proteção . Naquela época, o vírus começava a circular no país, e o Ministério da Saúde, então comandado por Luiz Henrique Mandetta, orientava que se evitasse a realização de eventos de massa e aglomerações públicas.
Na época, Barra Torres se contrapunha ao ministro, posicionando-se contrário a medidas drásticas em relação ao coronavírus. Segundo ele, elas deveriam ser evitadas para que não se criasse um clima de pânico no país. Em maio daquele ano, ele foi diagnosticado com covid-19.
Em novembro de 2020, o contra-almirante se envolveu em outro embate travado por Bolsonaro, desta vez com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que apostava na produção da vacina chinesa Coronavac pelo Instituto Butantan e poderia ter na iniciativa um trunfo político. Em outubro daquele ano, o presidente havia mandado o então ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, cancelar a compra do imunizante.
A Anvisa então decidiu suspender temporariamente os testes clínicos com o produto no Brasil devido à morte de um voluntário. O Butantan disse ter sido “surpreendido” pela medida. “Ocorreu um óbito que não tem relação com a vacina. Portanto, não existe nenhum motivo para interrupção do estudo clínico”, afirmou à imprensa o diretor do instituto, Dimas Covas. Mais tarde, soube-se que o voluntário havia cometido suicídio.
Bolsonaro chegou a fazer uma publicação no Facebook comemorando a morte do voluntário dos testes da Coronavac. O presidente disse: “Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar a todos os paulistanos a tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, escreveu.
Em entrevista, Barra Torres negou interferência política. “Quem se surpreende com uma decisão tomada por nós está se surpreendendo com algo que é óbvio. É nosso dever tomar decisões, não tomar é prevaricação. Não faremos. Iremos decidir, no momento certo, na hora certa, diante de documentos que nos respaldem, ou na ausência deles, conforme aconteceu”, disse.
Segundo ele, a decisão foi “técnica” , baseada em informações repassadas pelo Butantan, que considerou serem “insuficientes” e “incompletas” sobre a morte do voluntário. Ele afirmou que o instituto paulista não havia informado a agência sobre o suicídio.
Por causa das suspeitas de interferência de Bolsonaro na Anvisa, a avaliação dos resultados da Coronavac para sua liberação, em janeiro de 2021, foi marcada por incertezas. O imunizante, porém, recebeu autorização emergencial — assim como o da AstraZeneca — e imediatamente começou a ser aplicado no país.
Na justificativa para a aprovação, os diretores deixaram claro que, até aquele momento, não havia nenhuma “alternativa terapêutica aprovada disponível para prevenir ou tratar a doença causada pelo novo coronavírus”, o que contrariava o presidente, defensor de um inexistente “tratamento precoce”, com remédios sem efeito contra a covid-19.
Desde que as vacinas se tornaram uma realidade na pandemia, as decisões da agência passaram a ser elogiadas pelo rigor técnico. Os imunizantes da Pfizer e da Janssen (farmacêutica da Johnson & Johnson) também foram incorporados ao plano de vacinação do Ministério da Saúde, após aval da agência.
Já os pedidos da vacina russa Sputnik V e da indiana Covaxin foram recusados por falta de dados sobre efetividade e segurança. O líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), passou a criticar a Anvisa por suposta “inércia” e “falta de agilidade” na autorização para outros imunizantes — a CPI da Covid posteriormente iria descobrir seu envolvimento em negociações para a compra de outras vacinas. Barros chegou a dizer que o Congresso iria “enquadrar” a agência para acelerar o processo. Os parlamentares incluíram até uma proposta numa medida provisória aprovada para que a Anvisa fosse obrigada a aprovar em apenas cinco dias qualquer pedido de uso emergencial, o que Bolsonaro acabou vetando após protestos de Barra Torres.
Em maio de 2021, ao ser ouvido pela CPI da Covid, o diretor-presidente da agência surpreendeu os senadores por tentar se distanciar do presidente . Ao ser questionado pelo relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), se compartilhava do posicionamento de Bolsonaro contrário às medidas de distanciamento social e à utilização de máscara, Barra Torres respondeu que “destarte a amizade” com o presidente, sua conduta sobre o tema era diferente. “As manifestações que faço têm sido todas no sentido do que a ciência determina”, disse.
Ele também afirmou ter se arrependido da participação na manifestação de apoio ao presidente em 2020, no início da pandemia. “De minha parte, digo que foi um momento em que não refleti sobre a questão da imagem negativa que isso passaria. E, certamente, depois disso, nunca mais houve esse tipo de comportamento meu, por exemplo”, afirmou.
As tensões entre Bolsonaro e a Anvisa aumentaram no final de 2021. Em novembro, devido ao aparecimento na África do Sul da variante ômicron, cepa mais transmissível do novo coronavírus, a agência recomendou à Casa Civil que se exigisse o comprovante de vacinação contra a covid-19 de viajantes que chegam ao Brasil por ar e terra.
“A inexistência de uma política de cobrança dos certificados de vacinação pode propiciar que o Brasil se torne um dos países de escolha para os turistas e viajantes não vacinados, o que é indesejado do ponto de vista do risco que esse grupo representa para a população brasileira e para o Sistema Único de Saúde”, afirmou o órgão.
Bolsonaro sempre se disse contra o passaporte vacinal por considerá-lo uma “coleira”, embora a medida seja considerada eficaz. O governo propôs como alternativa uma quarentena de cinco dias para os não vacinados, mas a medida foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal, que impôs a necessidade de apresentação da carteira de vacinação. Na segunda-feira (20), o governo publicou uma portaria obrigando a apresentação de comprovante de vacinação para a entrada de viajantes no país, atendendo à determinação da Justiça.
Em 16 de dezembro, a Anvisa aprovou o uso de doses pediátricas da Pfizer em crianças de 5 a 11 anos, como ocorreu em países como os Estados Unidos, mas o Ministério da Saúde sequer havia comprado essas vacinas. Segundo o portal UOL, Bolsonaro ficou furioso e transtornado com Barra Torres por causa da decisão. Ele afirmou ter se arrependido da indicação do contra-almirante para o cargo.
Por causa dos mandatos fixos, o presidente não pode demitir os diretores da Anvisa, como fez com ministros da Saúde ou no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), do qual disse ter “ripado” toda a diretoria por ela ter atrapalhado uma obra executada pelo empresário bolsonarista Luciano Hang, das lojas Havan.
Desde outubro, funcionários da Anvisa receberam ao menos duas ameaças de morte caso liberassem as vacinas para crianças — pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), a imunização com vacinas recomendada pelas autoridades de saúde já é obrigatória para esse público no país. Ao falar durante o anúncio da decisão, Barra Torres comentou os episódios.
“O acirramento dessa violência antivacina vai num viés crescente e é importante que falemos enquanto há tempo, antes que ameaças como essas e outras se concretizem”, disse. Os diretores do órgão chegaram a pedir proteção policial, mas o pedido foi negado.
Em transmissão pela internet no mesmo dia da decisão da Anvisa a favor da vacinação de crianças, Bolsonaro ameaçou divulgar os nomes dos técnicos que assinaram a nota técnica, na tentativa de intimidá-los. No dia seguinte, os diretores da agência divulgaram uma nota dizendo repudiar e repelir com “veemência qualquer ameaça, explícita ou velada que venha constranger, intimidar ou comprometer o livre exercício das atividades regulatórias e o sustento de nossas vidas e famílias: o nosso trabalho, que é proteger a saúde do cidadão”.
O órgão divulgou que as ameaças de violência cresceram após a fala de Bolsonaro e que novamente pediu proteção policial aos funcionários. A Polícia Federal passou a investigar o caso. Já a Procuradoria-Geral da República afirmou na segunda-feira (20) ter determinado a adoção de providências para garantir a proteção dos diretores da Anvisa.
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