A oposição de técnicos à investida antivacinal de Bolsonaro
Estêvão Bertoni
27 de dezembro de 2021(atualizado 28/12/2023 às 23h35)Grupo de especialistas que assessora governo e secretária do Ministério da Saúde defendem vacinação infantil contra a covid, enquanto órgão retarda decisão com consulta pública
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O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e o presidente Jair Bolsonaro, durante evento em Brasília
O Ministério da Saúde informou na segunda-feira (27) que prevê iniciar a vacinação de crianças de 5 a 11 anos contra a covid-19 em janeiro de 2022. A inclusão do público no plano nacional, porém, está condicionada ao resultado de uma consulta pública sobre o assunto, aberta em 24 de dezembro. A decisão de consultar a população leiga sobre uma tema técnico é incomum, por já existir desde 16 de dezembro aval da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para a aplicação das doses.Ao atuar para atrasar a imunização infantil, o governo tem ignorado seus próprios técnicos.
Em nota enviada ao Supremo Tribunal Federal tornada pública na segunda-feira (27), a secretária extraordinária de enfrentamento à covid-19 do ministério, Rosana Leite de Melo, disse que “nenhuma preocupação séria de segurança foi identificada” nos testes da vacina da Pfizer com crianças, o que contraria o presidente Jair Bolsonaro, que vem desacreditando os imunizantes, intimidando técnicos da Anvisa e determinando ao Ministério da Saúde que dificulte a vacinação infantil.
Antes disso, o governo já havia pressionado os integrantes da Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19, que atua junto ao ministério, para prorrogar a análise do tema. Depois, ignorou uma nota do grupo em apoio à imunização de crianças.A estratégia do governo de retardar decisões na pandemia tem sido comum, a exemplo do ocorrido com a discussão na Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) sobre a eficácia do “kit covid”, que incluía a cloroquina. Um relatório que rejeitava o uso dos medicamentos foi colocado em consulta pública em novembro e aprovado em dezembro.
Neste texto, o Nexo mostra como os técnicos que auxiliam o governo federal têm se manifestado em relação à vacinação infantil e qual vem sendo a resposta dada pelo governo Bolsonaro, que já fala em iniciar a imunização em janeiro após críticas pela demora em tomar uma decisão.
A vacinação de crianças contra a covid-19 começou pelo mundo ainda em setembro de 2021. No Brasil, o Instituto Butantan chegou a solicitar a aprovação da Coronavac para o público infantil, mas o pedido foi negado pela Anvisa em agosto por falta de dados.
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países começaram a vacinar crianças contra a covid-19 até dezembro de 2021, segundo o Ministério da Saúde
Desde outubro, técnicos da agência reguladora brasileira sofrem ameaças de morte de apoiadores do presidente para não aprovarem a medida. Naquele mesmo mês, o governo dos Estados Unidos autorizou a aplicação de doses da Pfizer em crianças de 5 a 11 anos, e o laboratório americano pediu o aval para o uso no Brasil no início de novembro.
Com a autorização da Anvisa do uso das doses pediátricas, em 16 de dezembro, o presidente Bolsonaro voltou a abordar o tema, atacando os técnicos da agência e colocando em dúvida a segurança das vacinas, sem apresentar nenhuma prova de que elas representem um risco. As ameaças aos servidores da agência voltaram a acontecer depois disso.
A CTAI (Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização) da Covid-19, criada em agosto de 2021 pelo Ministério da Saúde, reuniu-se no dia seguinte da aprovação da Anvisa para debater o tema, mas foi pressionada pelo governo para não tomar nenhuma decisão.
Entre as funções do órgão estão realizar análises técnicas e científicas, propor a definição do público-alvo da vacinação, estimar as doses necessárias e propor ações para implementar o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a covid-19. A câmara é formada por membros do Ministério da Saúde, representantes dos conselhos de secretários estaduais e municipais de Saúde e especialistas de “notório conhecimento em assuntos relacionados à imunização”.
O governo federal queria que a CTAI analisasse os questionamentos de um grupo de médicos conhecido por ter posições antivacina e pela defesa de um falso “tratamento precoce” com remédios ineficazes como a cloroquina. Esse grupo alega que os imunizantes em uso são experimentais e que poderiam causar “efeitos adversos” nas crianças.
Com a pressão do Ministério da Saúde, os integrantes da câmara técnica ameaçaram entregar seus cargos. Em 18 de dezembro, eles divulgaram uma nota em que pedem que a pasta adote a imunização de crianças o mais rapidamente possível.
O governo, porém, ignorou os técnicos e propôs uma consulta pública , que não costuma ser feita quando há decisões prévias da Anvisa. Para justificar a demora na adoção da imunização infantil, Queiroga respondeu que “ a pressa é inimiga da perfeição”.
A consulta ficará disponível até o começo de janeiro, quando o governo deve decidir sobre o tema. A previsão é que isso aconteça em 5 de janeiro de 2022. Para que a vacinação possa acontecer, porém, é preciso que o ministério adquira as doses pediátricas, que são diferentes e correspondem a um terço das usadas em adolescentes e adultos. O país ainda não comprou essas doses, mas o ministério tem dito que a imunização deve começar ainda em janeiro .
Desde o início da pandemia, o governo Bolsonaro tem sido marcado por pressões sobre ministros da Saúde (dois deles, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, foram demitidos por se oporem ao “tratamento precoce”) e sobre a Anvisa (que tem sido elogiada por tomar decisões estritamente técnicas, apesar do temor inicial de que a agência poderia se dobrar ao presidente).
Por causa de uma ação do PT no Supremo Tribunal Federal que cobra do Ministério da Saúde a divulgação de um cronograma da vacinação em crianças, o governo enviou uma nota técnica ao tribunal, assinada pela secretária extraordinária de enfrentamento à covid-19, Rosana Leite de Melo, em que ela afirma que a vacina é segura e pode proteger crianças, evitando mais interrupções das atividades escolares.
“Antes de recomendar a vacinação [contra a] covid-19 para crianças, os cientistas realizaram testes clínicos com milhares de crianças e nenhuma preocupação séria de segurança foi identificada”
Ela lembra ainda no documento que os imunizantes estão sendo monitorados “com o programa de monitoramento de segurança mais abrangente e intenso da história do Brasil”. Segundo Rosana Melo, vacinar crianças deve ajudar a reduzir a transmissão para adolescentes e adultos, como idosos e imunocomprometidos.
Sua posição contrasta com os questionamentos de Bolsonaro sobre a segurança das vacinas, embora o Ministério da Saúde negue haver contradição e diga ser favorável à vacinação de crianças. O presidente tem dito haver uma “desconfiança” e uma “interrogação enorme”, em relação aos imunizantes, o que não é verdade . Não existe discordância também na comunidade científica em relação ao tema, já que os ensaios clínicos não mostraram graves efeitos adversos.
Bolsonaro chegou a citar a miocardite (inflamação do músculo cardíaco) como possível efeito adverso. Ao lado da pericardite (inflamação do tecido que envolve o coração), essas doenças chegaram a ser observadas em outras faixas etárias, mas foram consideradas muito raras — podem ocorrer em apenas 0,007% dos casos. A Anvisa lembrou que uma pessoa com 16 anos ou mais infectada com a covid-19 tem 37 vezes mais chances de apresentar essas mesmas inflamações do que alguém que tenha sido vacinado. Os benefícios da vacinação superam, portanto, os riscos.
Na segunda-feira (27), Bolsonaro disse que sua filha Laura, de 11 anos, não será vacinada . “Espero que não haja interferência do Judiciário. Espero. Porque minha filha não vai se vacinar. Deixar bem claro. Tem 11 anos de idade”, disse ao chegar a São Francisco do Sul, em Santa Catarina, onde passará o Ano Novo. Segundo ele, a questão da vacina para crianças é “muito incipiente” e o “mundo ainda tem muita dúvida”.
O presidente tem deixado claro em suas falas ter determinado ao ministério que crie dificuldades à vacinação de crianças. Ele defendeu, por exemplo, a necessidade de prescrição médica para a imunização. Queiroga afirmou em 23 de dezembro que o documento será exigido, assim como a assinatura de um termo de consentimento dos pais, mas ao menos metade dos estados brasileiros informaram que não seguirão as recomendações.
Em 24 de dezembro, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo, deu um prazo de cinco dias para o Ministério da Saúde explicar o motivo da exigência da apresentação de prescrição médica — o prazo para apresentar um cronograma de vacinação infantil, também cobrado pelo tribunal, foi estendido para o início de janeiro.
No Brasil, a vacinação de crianças é obrigatória “nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”, como prevê desde 1990 o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que ainda estipula multas aos pais em caso de descumprimento.
A decisão da Anvisa favorável à vacinação infantil foi corroborada no Brasil pelas sociedades brasileiras de Imunizações (SBIm), Pediatria (SBP), Imunologia (SBI) e Infectologia (SBI) e por instituições como a Academia Nacional de Medicina (ANM), Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
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