A pressão da ômicron sobre as vacinas de vírus inativado
Estêvão Bertoni
17 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h18)Tecnologia da Coronavac é a mais utilizada globalmente no combate à pandemia, mas pesquisas têm demonstrado que imunizantes não conseguem neutralizar variante mais transmissível
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Trabalhadores do Instituto Butantan, em São Paulo, trabalham na produção da vacina Coronavac
Desde a identificação da variante ômicron do novo coronavírus, no final de novembro, uma série de pesquisas vem apontando que vacinas que utilizam o próprio coronavírus inativado (ou “morto”) em sua composição geram pouca ou nenhuma proteção contra a infecção pela nova cepa do vírus, embora ainda evitem hospitalizações e mortes pela covid-19 — o que ainda lhes garante um papel fundamental no combate à pandemia.
Mais baratas e de fácil produção, as vacinas inativadas são atualmente as mais utilizadas no mundo, principalmente em regiões como Ásia, Oriente Médio, Norte da África e América do Sul e Central. Segundo um levantamento da consultoria em saúde Airfinity, de Londres, das quase 11 bilhões de doses contra o novo coronavírus produzidas na pandemia, 5 bilhões recorriam à tecnologia. No Brasil, cerca de um em cada quatro vacinados receberam doses da Coronavac, que utiliza a plataforma.
Neste texto, o Nexo mostra por que a tecnologia do vírus inativado tende a gerar uma resposta imunológica mais fraca do que as demais vacinas, como o desempenho desses imunizantes vem alterando as estratégias dos governos no combate à covid-19 e por que, apesar dos resultados das pesquisas, elas ainda são úteis.
A tecnologia surgiu ainda no século 19, graças ao cientista francês Louis Pasteur (1822-1895), que desenvolveu uma vacina contra a raiva ao inativar com o calor o vírus causador da doença. O método deixou de ser usado, posteriormente, devido à dificuldade em se achar a temperatura certa para “matar” o vírus, sem ao mesmo tempo eliminar sua capacidade de gerar atividade imunológica no organismo.
No início do século 20, cientistas conseguiram inativar o vírus usando substâncias químicas . Em 1949, por exemplo, o diretor do Laboratório de Pesquisa de Vírus da Escola de Medicina da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, Jonas Salk (1914-1995), usou formaldeído (que dá origem ao formol) para inativar o poliovírus, causador da poliomielite. Em 1955, sua vacina começou a ser usada nos Estados Unidos e foi fundamental para o combate à doença.
Esse tipo de vacina engana o sistema imune ao introduzir no corpo o próprio vírus “morto”, desencadeando assim o processo de proteção do organismo. Como o agente infeccioso não causa a doença em si, por estar inativado, o imunizante é considerado extremamente seguro, especialmente para pessoas imunodeprimidas ou grávidas. Outras vacinas podem usar um adenovírus vivo, o chamado vetor viral, com o material genético modificado (como a da AstraZeneca) ou apenas a informação genética para que as próprias células humanas produzam proteínas do vírus (como a da Pfizer e da Moderna, de RNA mensageiro).
A farmacêutica bioquímica e doutora em biociências e biotecnologia Laura Marise de Freitas, do canal de divulgação científica Nunca Vi 1 Cientista , diz ao Nexo que uma vacina inativada pode ser interessante por produzir uma “variedade de anticorpos muito maior contra vários tipos de estruturas diferentes do vírus”. Outras vacinas, como a de RNA mensageiro, por exemplo, podem conter apenas uma parte do coronavírus — como a proteína Spike, em formato de espinho, que reveste o vírus e é usada por eles para se grudar às células humanas.
“Eu não tenho ali só a Spike. Eu tenho o vírus completo. Então eu produzo uma proteção um pouco mais variada”, disse. Ao mesmo tempo, pondera a pesquisadora, embora a resposta gerada seja boa, ela é menos específica, e pode ser mais fraca se comparada a outras tecnologias, como as vacinas atenuadas (que usam uma versão do vírus “vivo”, mas enfraquecido, a exemplo da vacina de via oral desenvolvida pelo médico polonês Albert Sabin, nos anos 1950, também contra a poliomielite). Por causa disso, a vacina inativada requer mais doses de reforço.
Segundo Laura Marise, geralmente essas vacinas precisam de adjuvantes para estimular o sistema imune. Esses adjuvantes são substâncias que potencializam a resposta imunológica, como o hidróxido de alumínio, o mais frequentemente utilizado pelos laboratórios.
“Para ter uma resposta imunológica, tenho que provocar uma inflamação. Esse processo inflamatório convoca todo o sistema imune a desencadear uma resposta, gerando as células que vão produzir os anticorpos. Nas vacinas atenuadas, nas de vetor viral [AstraZeneca] ou nas de RNA mensageiro [Pfizer e da Moderna], esse processo é muito mais intenso porque elas provocam uma mini-infecção, e essa mini-infecção gera uma resposta inflamatória muito maior, em proporção maior, então o corpo junta mais força, como se entendesse que tem um perigo um pouco maior, e tende a uma resposta mais duradoura”, afirma a pesquisadora.
Para ela, apesar disso, as vacinas inativadas não são piores que as demais. “É simplesmente uma tecnologia diferente. A vacina da gripe é assim. Essas vacinas têm muitas vantagens, mas tem também as desvantagens de precisar dos reforços”, disse.
A ômicron foi identificada pela primeira vez no final de novembro, na África do Sul, e rapidamente se espalhou pelo mundo. Suas características causaram preocupação imediata nos cientistas, já que a variante apresentava 50 mutações, sendo 32 delas na proteína Spike. A delta, na época responsável por 99% dos casos de covid-19 no mundo, trazia apenas nove mutações.
Desde então, os cientistas pesquisam os efeitos das vacinas em relação à nova cepa, com base em estudos de laboratórios para saber se os imunizantes neutralizam o vírus, impedindo que eles entrem nas células humanas após serem bloqueados por anticorpos.
No geral, a eficácia de todas as vacinas tem sido menor em relação às novas variantes, embora as vacinas de RNA mensageiro venham apresentando melhor desempenho. Com a segunda dose, já há redução de hospitalizações e mortes, mas mesmo assim todas as vacinas têm exigido doses de reforço para uma proteção ainda mais robusta devido às mutações do coronavírus. Com o tempo, a terceira dose deve deixar de ser considerada uma dose extra e ser incorporada ao esquema vacinal.
Em meados de dezembro, um estudo de pesquisadores da Universidade de Hong Kong, publicado na revista médica Clinical Infectious Diseases, sugeria que a Coronavac não conseguia neutralizar a ômicron após o esquema primário completo.
“Em um grupo de 25 pessoas vacinadas com duas doses de Coronavac, nenhuma mostrou anticorpos suficientes em seu soro sanguíneo para neutralizar a ômicron”, afirmava o trabalho, publicado dias depois de o próprio laboratório Sinovac, que desenvolveu a vacina na China, ter divulgados resultados de pesquisas próprias apontando que apenas 35% dos participantes que tomaram duas doses da vacina tinham níveis de anticorpos capazes de barrar a variante. Quando foram aplicadas três doses, a taxa subiu para 94%, segundo o mesmo trabalho. Todos esses estudos, porém, consideram grupos pequenos de participantes e não podem ser considerados conclusivos.
Pesquisadores ponderam que a proteção desencadeada pelo sistema imune não acontece apenas por meio de anticorpos, mas também a partir de células de defesa que guardam memória de infecções antigas, o que é difícil de ser mensurado. Com isso, mesmo que o nível de anticorpos caia, ainda existiria uma linha de defesa no organismo que evitaria, por exemplo, o agravamento da doença e casos de morte — por isso as pesquisas não indicariam a real proteção das vacinas de vírus inativado, que têm contribuído para reduzir internações e óbitos, como atestam os indicadores da pandemia.
A efetividade da Coronavac vem sendo analisada desde meados de 2021. Um estudo publicado em julho por pesquisadores liderados pelo infectologista Julio Croda, que foi diretor do Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde de 2019 a 2020, mostrou que a efetividade da Coronavac caía quanto maior a idade do vacinado — o que é natural, devido ao envelhecimento do sistema imune.
A pesquisa foi feita com base em dados de 15.852 pessoas de 70 anos ou mais, vacinadas em São Paulo. Os casos ocorreram entre 17 de janeiro, data do início da vacinação do Brasil, a 29 de abril.
Por causa da queda na proteção da Coronavac, principalmente a partir do terceiro mês após a segunda dose, os países começaram a usar uma dose de reforço — um estudo conduzido por pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) mostrou que o risco de se infectar com o novo coronavírus aumenta consideravelmente seis meses depois da imunização em pessoas entre 18 e 39 anos com a vacina.
Ainda em outubro, um comitê de peritos da OMS (Organização Mundial da Saúde) passou a recomendar uma terceira dose para as pessoas com 60 anos ou mais imunizadas com as vacinas da Sinovac e Sinopharm, que compartilham da mesma tecnologia — a indiana Covaxin é outra que recorre à plataforma do vírus inativado.
Os países que aplicaram esse tipo de vacina em massa optaram por um reforço com uma tecnologia diferente. No Chile, a opção foi uma dose extra da AstraZeneca, enquanto o Uruguai optou pelo imunizante da Pfizer — assim como ocorreu no Brasil.
Com a ômicron, a efetividade tem sido baixa mesmo com uma combinação heteróloga (com produtos de laboratórios diferentes). No final de dezembro, uma pesquisa conduzida por cientistas da Universidade de Yale , nos Estados Unidos, com base na amostra de sangue de 101 pessoas que tomaram duas doses da Coronavac seguidas de um reforço da Pfizer (vacina de RNA mensageiro), apontou que o nível de anticorpos contra a variante foi 6,3 vezes mais baixo em comparação com o vírus original, identificado em 2019 em Wuhan, na China, e 2,7 vezes mais baixo quando comparado com a variante delta.
Uma das autoras do estudo, Akiko Iwasaki chegou a afirmar que pessoas que completaram o esquema de duas doses da Coronavac podem precisar de duas doses adicionais da Pfizer.
No começo de janeiro, o Butantan divulgou um estudo de pesquisadores chineses alegando que a vacina tinha capacidade de neutralização contra ômicron maior do que outros imunizantes , mas a informação foi contestada por cientistas, já que a pesquisa se baseou em apenas 16 amostras, número sem relevância estatística.
Em entrevista à CNN Brasil, Marco Aurélio Palazzi Sáfadi, presidente do Departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, afirmou que a pesquisa tem limitações importantes e que os estudos de laboratório que avaliam a performance da Coronavac têm mostrado que “existe um prejuízo muito grande na produção de anticorpos neutralizantes para a ômicron”.
Países que adotaram as vacinas inativadas estão mudando a estratégia para enfrentar a ômicron. No Chile, por exemplo, o governo decidiu oficializar a quarta dose em janeiro de 2022. Ao anunciar a medida, o presidente Sebastián Piñera, que deixará o cargo em março, lembrou que uma pessoa sem proteção completa tem muito mais risco de se infectar e de ser internada na UTI [Unidade de Terapia Intensiva] do que uma pessoa com as doses de reforço.
No Brasil, a Coronavac, que sustentou a campanha de imunização contra a covid-19 no início e chegou a representar 85% das vacinas usadas em março de 2021, caiu para apenas 10% das doses aplicadas em dezembro. O Ministério da Saúde dá sinais de que não irá utilizar o produto em 2022.
Mas mesmo com o resultado das pesquisas, as vacinas inativadas são consideradas essenciais para o enfrentamento à pandemia e podem ser estratégicas. “São várias nuances que podem fazer com que a Coronavac seja menos distribuída, inclusive questões políticas. Mas eu não acredito que ela deva ser deixada de lado. Até porque pode ser um grande trunfo justamente para a vacinação infantil. Ela está sendo estudada para crianças a partir de seis meses”, disse ao Nexo a pesquisadora Laura Marise.
A Coronavac tem como benefício ao ser usada na imunização de crianças o fato de causar menos reações adversas ou qualquer tipo de problema em pessoas com sistema imune mais fraco, segundo a pesquisadora.
O Butantan, que produz o imunizante no Brasil, frequentemente acusa o governo federal de perseguição política. Ex-aliados, o governador João Doria (PSDB) e o presidente Jair Bolsonaro (PSDB), ambos com pretensões de concorrer à Presidência em 2022, se tornaram adversários e transformaram a vacinação em disputa eleitoral .
Em dezembro, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou o uso no Brasil da vacina da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos de idade — a aplicação começou em meados de janeiro. O Butantan já havia pedido autorização para a utilização da Coronavac no público infantil em meados de 2021, mas teve o pedido negado por falta de dados sobre sua segurança. O órgão fez nova solicitação no final do ano passado e aguarda análise da agência reguladora.
Na segunda-feira (17), a cidade de São Paulo iniciou a vacinação de crianças, mas a prefeitura havia recebido apenas 64 mil doses da Pfizer para atender a um público de 236 mil crianças com comorbidades. Caso não recebesse mais vacinas, a campanha corria o risco de ser suspensa . A Coronavac poderia, portanto, suprir essa escassez.
No início de dezembro, o Butantan anunciou ter reservado 12 milhões de doses da Coronavac para crianças de 3 a 11 anos, que poderiam ser usadas imediatamente com a liberação da Anvisa. A nova fábrica de vacinas do instituto também ficou pronta em janeiro de 2022, embora aguardasse a chegada de equipamentos para o início das operações.
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