Expresso

O que é racismo religioso. E qual seu efeito nas crianças

Iraci Falavina e Guilherme Gurgel

21 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h20)

Pais que praticam religiões de matriz africana no Brasil relatam casos de preconceito, incluindo a perda da guarda de filhos sob a anuência da Justiça

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FOTO: JAN SOCHOR/GETTY IMAGES – 3.FEV.2012

Devotos do candomblé carregam cestas de flores em cerimônia religiosa, na Bahia

Devotos do candomblé carregam cestas de flores em cerimônia religiosa, na Bahia

Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.

Dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos apontam 645 registros de violações da liberdade de crença e religião no Brasil entre janeiro e dezembro de 2021, a maior parcela relacionada a religiões de matriz africana — incluindo Candomblé, Umbanda e outras. Levantamentos anteriores também refletem essa realidade.

Intolerância

Registros de violações de liberdade religiosa no Brasil, por gênero da vítima, de acordo com dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos

O preconceito que cerca quem pratica o Candomblé, a Umbanda, entre outras designações afro, integra o fenômeno do racismo religioso. Trata-se de um problema que, segundo especialistas, tem um impacto especialmente danoso para crianças.

Neste texto, o Nexo explica o que configura o racismo religioso, mostra o que a legislação prevê sobre o tema e traz relatos, que vão do preconceito no ambiente escolar a decisões judiciais que fazem com que filhos sejam separados dos pais.

O conceito e a legislação

A expressão “racismo religioso” não está no Código Penal, mas é algo que se enquadra na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, segundo o advogado especialista em crimes raciais Gilberto Silva.

Tal lei versa sobre crimes provocados por “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, com penas previstas de um a três anos de reclusão.

O termo “racismo religioso”, então, acaba sendo usado para reforçar um ponto central da sociedade brasileira: o racismo estrutural no Brasil.

Silva afirma que a lei ainda é vista por muitos como pouco eficiente e permissiva. Professor de história da África da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Alexandre Marcussi concorda que a punição ainda é ineficaz para os casos de racismo religioso. “A lei é extremamente leniente. Tem sido principalmente nos últimos anos no Brasil, com a ascensão ao poder e a influência de cultos religiosos pentecostais, que fazem ataques recorrentes a cultos de religiões africanas”, afirma.

“Se pode entender essas intolerâncias menos como intolerância contra as práticas dessas religiões e mais como uma intolerância às camadas da população que estão historicamente associadas a essas religiões”

Alexandre Marcussi

professor de história da África da UFMG

O Brasil viveu 300 anos de escravidão, período em que milhões de pessoas foram trazidas à força de regiões da África para serem usadas e negociadas como mercadoria. A cultura e a religião dessas pessoas sofreram um processo de tentativa de apagamento.

O artigo 5º da Constituição brasileira de 1824 , por exemplo, instituiu o catolicismo como a religião oficial do Império. Já o artigo 276 do Código Criminal de 1830 proibia celebrar em casa, publicamente ou em templos “o culto de outra religião que não seja a do Estado”.

A abolição só foi proclamada em 1888 no Brasil e o Estado brasileiro só se tornou laico a partir de 1890, com o decreto nº 119-A , de 7 de janeiro daquele ano. A lei concedeu a todas as confissões religiosas “a faculdade de exercerem o seu culto, regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas” e proibiu o Estado de definir uma religião oficial.

Mais tarde, na Constituição de 1988 , conhecida como a Constituição Cidadã, o inciso 6 do Artigo 5º assegura ser inviolável a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos.

Ainda assim, o preâmbulo da atual Carta Magna define a promulgação do documento “sob a proteção de Deus”, mostrando resquícios da ainda influente religião cristã no país.

“Ninguém se incomoda da mãe levar o filho para batizar no cristianismo quando é bebê. É uma cerimônia bonita, celebrada, lembrada. Agora, todo mundo incomoda com a iniciação das crianças no Candomblé e na Umbanda. Mesmo estando acompanhada de seus pais. Isso é o quê? Se não o racismo religioso?”

Makota Celinha

coordenadora geral do Cenarab (Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira)

O racismo religioso na escola

As crianças de religiões de matriz africana sofrem preconceito na escola começando por suas brincadeiras, segundo Makota Kidoiale, líder da comunidade quilombola Manzo N’Gunzo Kaiango e coordenadora do programa Educa Quilombo, em Belo Horizonte.

“No primeiro ano de escola dos meus netos, eles iam para o parquinho e as brincadeiras deles eram muito diferentes do que a própria estrutura da escola foi programada para poder receber. Eles ficavam reproduzindo tudo aquilo que eles viviam dentro do terreiro”, conta.

Segundo Kidoiale, a administração da escola se incomodou com o comportamento das crianças. “Tinham medo de criar um problema com outras famílias, porque as outras crianças podiam reproduzir isso em casa. Eu questionei, porque da mesma forma que meu neto trazia outra cultura, outra tradição, outros conhecimentos para dentro da nossa casa, por que não transversalizar com tudo que ele vivenciava dentro da comunidade?”, afirma.

Em 2003 entrou em vigor a lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no ensino fundamental e médio. Mas, para Kidoiale, a legislação não faz com que a temática tenha uma abordagem adequada na grade curricular. Ela acredita que o fato da educação brasileira ser muito baseada em princípios cristãos acaba por gerar uma exclusão da diversidade. “A escola não dá conta de trabalhar nem mesmo a história da população africana, quanto mais a religião.”

Segundo a psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, da Abrapso (Associação Brasileira de Psicologia Social) e da ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros), o combate ao racismo religioso nas escolas é de responsabilidade dos profissionais de educação, dos pais e responsáveis.

“O desafio é que os adultos são formatados nessa sociedade racista, nessa sociedade que tenta formatar, principalmente em um contexto cristão, fundamentalista, crianças que não se enquadram em certos padrões até de roupa e de práticas, então isso é muito violento”.

O racismo religioso na Justiça

Além das diferentes violações de direitos de expressar ritos de matriz africana na escola, há casos em que os pais perdem a guarda das crianças por iniciá-los na religião.

Uma situação que ganhou grande destaque na mídia em 2021 foi a da manicure Kate Belintani , de Araçatuba (SP) que teve a guarda da filha — na época, com 11 anos — suspensa. Kate foi acusada de lesão corporal após raspar os cabelos da menina em um ritual religioso do Candomblé.

Outro caso, que chegou a ser citado pela Unesco(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), é o da professora e jornalista Rosiane Rodrigues. Moradora de Rio das Ostras, no Rio de Janeiro, ela conta que perdeu a guarda do filho em 2007 por causa do preconceito religioso, a partir de uma decisão judicial.

Marcus Rodrigues, chamado geralmente de Marquinhos, o mais novo dos três filhos de Rosiane, nasceu em 2004. No ano seguinte, ela se separou do pai da criança, Marcus Henriques, o que deu início a uma disputa sobre quantos dias cada um ficaria com o filho.

Em uma das audiências do processo, Rosiane estava “tomando obrigação de santo”, um costume religioso do Candomblé que determina o uso de roupas brancas, cabeça coberta e colar de contas.Ao ver a professora vestida dessa maneira, a juíza do caso determinou que o laudo psicológico da família fosse feito com urgência. Segundo Rosiane, “depois disso, a juíza concluiu que por eu ser do Candomblé eu tinha menos condições morais de criar o garoto do que o pai dele.”

Rosiane afirma que dois oficiais de Justiça foram retirar Marquinhos de casa acompanhados de um carro da polícia. No momento, o filho estava na escola, e Rosiane se recusou a informar a localização da criança. Ela foi levada para a delegacia.

Marquinhos foi inicialmente entregue ao pai. Mas depois de uma série de vaivéns que duraram quatro anos, Rosana conseguiu a guarda de volta. Ela então buscou auxílio do Nudem (Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública). Três psicólogos e duas assistentes sociais trabalharam em um novo laudo psicossocial de Rosiane e seus filhos.

O garoto fez terapia com um psicólogo infantil durante um ano. “Logo que ele voltou para mim, que a gente consegue essa guarda provisória, ele volta muito assustado, com muito problema, com muito transtorno, uma criança muito agressiva”, conta Rosiane, que chegou a registrar um boletim de ocorrência contra o ex-marido por agressões ao filho.

O caso foi citado no relatório “Direito a uma vida livre de violência” , publicado em 2013 pela Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos em parceria com a Unesco como um caso emblemático de intolerância religiosa no Brasil.

Os efeitos do racismo religioso nas crianças

“As crianças não sabem que estão sofrendo intolerância, não têm o discernimento, a capacidade de entender o racismo. Há uma vulnerabilidade de quem não consegue se defender”, ressalta Makota Celinha, do Cenarab.

Para a líder quilombola Makota Kidoiale, um dos passos importantes para lidar com o choque de tradições é ouvir o que as crianças vivenciam. “A gente vai direcionando tudo que elas descobriram lá fora a um determinado lugar da comunidade”, diz.

“Por exemplo, se elas aprendem na escola sobre as folhas, a fase da vegetação, do plantio, aqui a gente acrescenta: ‘essa aula está relacionada a Oxossi, que é deus das folhas, das plantas. E é delas também que a gente tira os remédios’. A gente faz um complemento do que elas aprenderam”, exemplifica.

Nos casos em que o racismo religioso é mais explícito, é difícil conseguir a garantia do bem-estar da criança. “A gente mostra que existem as diferenças das religiões e cada um tem um conceito, e que infelizmente o nosso direito de falar sobre nós é muito recente, então as pessoas poucos sabem sobre nós. Mas às vezes é muito difícil, muito violento. Violento de pegar e pôr pra fora, fazer chacota quando estão vestidas com as contas, ou de branco, as pessoas olham assustadas para eles”, diz Kidoiale.

A psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus afirma que crianças que crescem em ambientes de discriminação religiosa se tornam adultos intolerantes, tornando a violência uma marca que molda a personalidade.

“A gente tem que lutar para que os profissionais de educação, de saúde, os que cuidam das crianças, permitam que elas sejam quem elas são, para que não gerem esses traumas que ficam para o resto da vida”, diz.

De acordo com o psicólogo Flávio Prata, pesquisador da área, é importante que a criança tenha um ambiente seguro. “Não há como dimensionar os efeitos do racismo especificamente, mas a influência está nos mecanismos que a criança encontra para lidar com essa discriminação”, afirma.

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