Expresso

Qual o efeito do ato pró-democracia no golpismo de Bolsonaro

Marcelo Montanini

11 de agosto de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h40)

Manifestação reuniu diversos setores da sociedade em São Paulo e foi replicado em várias cidades do país. Ao ‘Nexo’, cientistas políticas analisam os resultados que os eventos provocam

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FOTO: AMANDA PEROBELLI/REUTERS

Mulher branca de cabelos brancos está no centro da imagem. Ela discursa para dezenas de pessoas que estão a sua volta. Eles estão em um salão.

Patricia Vanzolini, presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) discursa durante evento de leitura de manifestos pró-democracia na Faculdade de Direito da USP

O simbolismo da reunião de diversos atores com visões de mundo díspares em defesa da democracia nesta quinta-feira (11) pode não provocar uma mudança de postura do presidente Jair Bolsonaro em relação ao sistema eleitoral brasileiro e aos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), mas sinaliza uma forte mensagem de resistência, segundo disseram ao Nexo as cientistas políticas e professoras Graziella Testa e Monalisa Soares.

Elas comentaram os resultados que o ato a favor do Estado democrático de direito pode provocar. O eventoreuniu empresários, advogados, artistas e movimentos sociais e sindicais na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Mobilizações semelhantes ocorreram em pelo menos 23 capitais do país.

A “ Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito!”, assinada por cerca de 1 milhão pessoas, foi lida no Largo de São Francisco. Ela não cita nominalmente o presidente Jair Bolsonaro, mas faz clara referência aos ataques sistemáticos do presidente ao sistema eleitoral do Brasil.

Antes, no mesmo evento, também foi lido outro manifesto que reuniu diversas entidades, como Fiesp (Federação das Indústrias do estado de São Paulo) e Febraban (Federação Brasileira de Bancos). Membros de centrais sindicais, como a CUT (Central Única dos Trabalhadores) e UGT (União Geral dos Trabalhadores), e de movimentos sociais, como a UNE (União Nacional dos Estudantes), também discursaram na solenidade.

A data, 11 de agosto , marca a criação dos cursos de direito no país em 1827. Também em 11 de agosto, mas em 1977, houve um ato no mesmo local contra a ditadura militar. Dias antes, em 8 de agosto daquele ano, aconteceu a leitura da Carta aos Brasileiros , manifesto a favor da democracia que inspirou a atual carta.

De Armínio Fraga a CUT

A leitura do manifesto pelo ex-ministro da Justiça José Carlos Dias reuniu atores de diferentes visões de mundo , como Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central, e Telma Aparecida, representando a CUT, Francisco Canindé, da UGT, e Miguel Torres, presidente da Força Sindical.

Patrícia Vanzolini, presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) seccional de São Paulo, também assinou a carta, assim como Beatriz Lourenço do Nascimento, coordenadora da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos, e Bruna Brelaz, presidente da UNE, entre outros.

FOTO: AMANDA PEROBELLI/REUTERS – 11.AGO.2022

Parte externa da Faculdade de Direito da USP durante ato em defesa da democracia

Parte externa da Faculdade de Direito da USP durante ato em defesa da democracia

Personalidades, como o ex-jogador Walter Casagrande, a cantora Daniela Mercury, a apresentadora Bela Gil e o jornalista e escritor Marcelo Rubens Paiva, também estiveram no ato da capital paulista.

Bolsonaro e aliados ironizam

Apesar de não ser citado nominalmente na carta, Bolsonaro reagiu, chamando a mobilização de “micareta do PT” e associando o partido do adversário na corrida presidencial Luiz Inácio Lula da Silva a governos autoritários de esquerda. “Assinar uma carta pela democracia enquanto apoia regimes que a desprezam e atacam os seus pilares têm a mesma relevância que uma carta contra as drogas assinada pelo Zé Pequeno”, disse o presidente nas redes sociais, referindo-se ao personagem traficante do filme “Cidade de Deus”.

Antes, Bolsonaro já havia ironizado o ato . Hoje, aconteceu um ato muito importante em prol do Brasil e de grande relevância para o povo brasileiro: a Petrobras reduziu, mais uma vez, o preço do diesel”, escreveu no Twitter.

Aliado de Bolsonaro, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), minimizou a mobilização . “A Câmara dos Deputados é o coração e a síntese da democracia. É a sua representação maior, pela sua diversidade e convivência harmônica e permanente dos divergentes. No Legislativo, todos os dias são atos pela democracia, atos que produzem efeitos concretos e transformadores na vida do país e dos brasileiros. Democracia, uma conquista de todos!”, afirmou.

Ex-aliado petista e atual ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP) chamou Bolsonaro de democrata e afirmou que a única carta que garante a democracia é a Constituição .

“A democracia, inclusive, é o que deveria existir mais em países como Venezuela e Cuba, que alguns ‘democratas’ no Brasil apoiam. Viva a democracia do Brasil. Viva o democrata Jair Bolsonaro”, escreveu Nogueira no Twitter.

FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 30.NOV.2021

Bolsonaro com a mão no rosto

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia em Brasília

O ministro das Comunicações, Fabio Faria (PP), resgatou uma publicação do presidente, na qual ele criava um manifesto próprio a favor da democracia , em tom de ironia. Na mensagem, Faria disse que assinava a carta de Bolsonaro.

Já o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), adotou um tom diferente dos demais. O parlamentar destacou o papel do Congresso como “guardião da democracia” e afirmou que “não aceitará qualquer movimento que signifique retrocesso e autoritarismo”.

“Não há a menor dúvida que a solução para os problemas do país passa necessariamente pela presença do Estado de Direito, pelo respeito às instituições e apoio irrestrito às manifestações pacíficas, à liberdade de expressão e ao processo eleitoral”, disse.

O simbolismo da união de atores antagônicos

Para entender os efeitos que as manifestações de 11 de agosto podem provocar, o Nexo conversou com as cientistas políticas:

  • Graziella Testa , professora da Escola de Políticas Públicas e Governo da FGV (Fundação Getulio Vargas)
  • Monalisa Soares , professora e pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da UFC (Universidade Federal do Ceará)

O ato de 11 de agosto pode ajudar a reduzir os ataques do presidente ao sistema eleitoral e aos ministros do Supremo? Como e por quê?

GRAZIELLA TESTA É um pouco complicado fazer esse tipo de previsão. Se por um lado, Bolsonaro pode pensar que este tipo de movimento afasta um eleitor mediano – que estaria disposto a mudar de voto e que se afastaria dele por causa das implicações deste tipo de comentário -, por outro lado – esses comentários contra ministros do Supremo e os ataques ao sistema eleitoral -, aproximam o eleitor mais fiel e que está mais comprometido com um determinado conjunto de pensamento que envolve essas questões.

Eu acho que neste momento a estratégia pode ser tanto uma comunicação de confronto que ele já usou em outros momentos – ou seja: tornar esse discurso ainda mais extremado – ou pode também afastá-lo e fazer com que ele busque um discurso mais nacionalista, patriótico, citando a bandeira e a tradição, que seria algo para buscar esse eleitorado menos decidido. Isso vai depender de um cálculo de como vai ser a carreira política dele fazendo uma leitura das pesquisas.

O ato demonstra para ele que há uma clara fatia da sociedade que está incomodada com esse tipo de colocação e que está disposta a ir às ruas, mais do que assinar uma carta, se manifestar politicamente a favor da democracia.

MONALIsA SOARES Não entendo que o ato vá frear o discurso do presidente, porque esse discurso é mobilizado pelo presidente para reaglutinar, arregimentar e mobilizar sua base eleitoral, que é uma base mais afim deste discurso antissistémico, de desconfiança do sistema político e, portanto, de todos esses atores institucionais, como atores do sistema de Justiça, em especial do STF.

É obvio que vimos que esse discurso do presidente pela sua posição institucional teve reverberação na sociedade de um modo geral, inclusive quando a gente viu um aumento no perfil de desconfiança das urnas eletrônicas nas pesquisas de opinião pública, mas também teve refluxo como vimos nas últimas pesquisas. Então, teve diminuição em face às resistências a estes ataques.

O que o ato de 11 de agosto representa para a população em geral? Como esse tipo de manifestação é percebido para além de quem faz parte dela?

GRAZIELLA TESTA A população em geral é muita gente, mas o peso simbólico do ato vem da reunião de atores muito diversos e tradicionalmente díspares no espectro político partidário: você vê assinando uma carta entidades estudantis e sindicatos, ao mesmo tempo que a Febraban e a Fiesp, que são atores que em via de regra estão em pontos opostos de um espectro quando se pensa em esquerda e direita no Brasil. Isso para a sociedade civil organizada é relevante, pois dá peso ao conteúdo da carta, quando a carta fala de alternância de poder, da democracia como deve ser – que é uma forma de processar o conflito que não resulta em violência.

Em última instância é isso: quando se fala em democracia, você assume que há conflito, que as pessoas não concordam com tudo, mas concordam com a maneira como vão processar esse conflito quando ele surgir. As eleições são os maiores exemplos disso: a gente concorda que a gente discorda: o eleitor do Bolsonaro não quer que Lula seja eleito, e o eleitor do Lula não quer que Bolsonaro seja eleito. Mas esse eleitor está disposto a aceitar os resultados das urnas, e isso nos faz falar que a democracia existe. Porque o conflito se processa numa arena de não violência.

O fato de ter grupos tão diversos assinando essa carta é o que dá mais peso e a torna mais simbólica, tendendo a tornar essa percepção mais aberta: você tem outros setores que talvez estivessem um pouco omissos ou não querendo se manifestar neste momento, esse ato dá mais liberdade para que eles se manifestem sem criar uma ligação partidária necessariamente com alguém.

MONALIsA SOARES Essas resistências são importantes porque são atores muito bem posicionados para fazer uma frente ampla em defesa da democracia, das regras do jogo e deste mínimo democrático, que é o processo eleitoral. É importante que a gente perceba que esse ato no Largo de São Francisco replicado em várias cidades em defesa da democracia e das eleições e da lisura do processo eleitoral a partir da condução do TSE [Tribunal Superior Eleitoral], é um elemento que também repercute na sociedade e, portanto, pode frear a possibilidade do presidente disseminar de modo significativo o seu discurso.

Em suma, não vai frear o presidente de fazer o discurso, mas pode frear a repercussão na opinião pública do discurso do presidente, na medida que mobiliza uma diversidade de atores do campo econômico, do campo jurídico, do campo acadêmico e movimentos sociais. Ou seja, uma diversidade de atores na defesa deste mínimo democrático, que são as eleições, e deste ator institucional, que é o TSE, na condução deste processo eleitoral, com a sua lisura e garantia do processo.

ESTAVA ERRADO :A primeira versão deste texto afirmava que a leitura da Carta aos Brasileiros, redigida em 1977, havia acontecido em 11 de agosto daquele ano. Na verdade, na data aconteceu um ato na faculdade, mas a leitura da carta já havia sido feita em 8 de agosto de 1977. A informação foi corrigida às 15h17 do dia 12 de agosto de 2022.

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