Expresso

Por que contrapor pesquisa ao ‘Datapovo’ não faz sentido

Isabela Cruz

14 de setembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)

É falacioso o discurso que usa imagens de aglomerações de apoiadores para tentar desacreditar levantamentos de institutos como o Datafolha. Entenda o método científico de levantamentos de intenção de voto 

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FOTO: AMANDA PEROBELLI/REUTERS – 07.SET.2022

Homens e mulheres vestidos em verde e amarelo, alguns com a mão do lado esquerdo do peito, olham para cima

Bolsonaristas em ato no dia 7 de setembro de 2022, na Avenida Paulista, em São Paulo

As imagens das aglomerações de bolsonaristas reunidos nos atos oficiais para o bicentenário da Independência não poderão ser usadas pelo presidente Jair Bolsonaro na sua campanha à reeleição, decidiram os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, na terça-feira (13). Mas elas continuam sendo usadas pelo bolsonarismo como forma de contestar a credibilidade das pesquisas eleitorais.

Nas redes sociais e plataformas de mensagens, um trocadilho se tornou mantra e é repetido pelo próprio presidente. “Nunca vi um mar tão grande aqui, com essas cores verde e amarela. Aqui não tem a mentirosa Datafolha, aqui é o nosso ‘Datapovo’. Aqui a verdade, aqui a vontade de um povo honesto, livre e trabalhador”, disse Bolsonaro, atacando o tradicional instituto ligado ao jornal Folha de S.Paulo.

Levantamento do Datafolha publicado em 9 de setembro, confirmou o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com 45% das intenções de voto (contra 34% de Bolsonaro), e o alto índice de rejeição ao atual presidente (51%, contra 39% de Lula). A diferença entre o petista e o candidato do PL (34%), porém, é a menor desde 2021. O levantamento foi registrado no TSE como BR-07422/2022.

Neste texto, o Nexo explica como pesquisas eleitorais confiáveis são feitas e destrincha as ciladas e os objetivos da ideia de “Datapovo”.

A importância da metodologia

Os números em relação ao comparecimento aos atos do 7 de setembro variam a depender de quem fez a contagem – algo comum quando se trata de mensuração de multidões por um número médio de pessoas por determinada metragem quadrada. No Rio de Janeiro, segundo professores da USP integrantes do projeto Monitor do Debate Público no Meio Digital, por exemplo, foram 64 mil pessoas. O site Poder 360 calculou 111 mil .

De qualquer forma, o comparecimento foi expressivo. Assim, para alguns eleitores, tem sido difícil compreender como um candidato capaz de reunir milhares de pessoas numa cidade, o que demonstraria bom grau de popularidade, está atrás na disputa pelas intenções de voto de um outro candidato que não tem feito comícios tão grandes.

As dúvidas passam também pela dificuldade de entender como pesquisas eleitorais, feitas com uma amostra de 2.000 a 3.000 pessoas, são capazes de expressar a vontade de um eleitorado de mais de 156 milhões de brasileiros.

As confusões ocorrem, basicamente, porque é mais difícil perceber a vontade dos eleitores que não aparecem nas imagens aéreas do que a vontade daqueles que aparecem na foto. O cientista político Christian Lynch, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), ilustrou essa ideia:

Para garantir que se conheçam as opiniões dos mais diversos eleitores, independentemente de eles irem às ruas por um candidato, as pesquisas de intenção de voto registradas no Tribunal Superior Eleitoral (caso do Datafolha) se valem de método científico.

A Justiça Eleitoral, aliás, proíbe a publicação nos meses antecedentes à votação de levantamentos de opinião que não respeitem o método científico, as chamadas “enquetes” , a fim de evitar que o leitor não seja influenciado por distorções de informação.Veja abaixo como o método científico dos levantamentos profissionais funciona.

A escolha da amostra

Diferentemente de convocações para manifestações políticas, especialmente aquelas voltadas para uma só campanha, as pesquisas de intenção de voto adotam procedimentos para captar a opinião dos mais variados perfis de eleitores que existem no país.

Como é inviável perguntar a cada um dos milhões de brasileiros aptos a irem às urnas quais são suas intenções de voto, os institutos de pesquisa inferem um resultado nacional a partir de perguntas feitas a alguns milhares de pessoas que, em sua diversidade e distribuição pelo território nacional, possam ser representativas do eleitorado brasileiro como um todo.

Faz-se, portanto, uma seleção de pessoas (amostra) que juntas formam uma espécie de “mini-Brasil”, respeitando-se as devidas proporções da população em relação a aspectos como idade, raça, renda, região em que vive, religião e gênero.

Por exemplo: se 53% do eleitorado total no Brasil são mulheres, percentual semelhante deve ser feminino na amostra populacional usada pelas pesquisas. Da mesma forma, se 43% dos eleitores brasileiros vivem no Sudeste, as pesquisas devem se orientar para replicar esse percentual na definição da proporção de sudestinos dentro da amostra. O mesmo vale para os demais aspectos populacionais.

Essa seleção é muito mais importante para a confiabilidade de uma pesquisa do que o tamanho da amostra. Isso ficou evidente num caso ocorrido nos Estados Unidos mais de 80 anos atrás. Em 1936, a revista americana Literary Digest decidiu realizar a maior pesquisa eleitoral para a disputa presidencial já realizada até aquele momento. Para isso, entrevistou por correio 2,4 milhões de pessoas .

Mas a revista errou o resultado: previu uma vitória de Alfred Landon sobre Franklin Roosevelt, e o vitorioso foi Roosevelt. Isso ocorreu porque a amostra escolhida pela revista foi equivocada: os entrevistados foram selecionados a partir de listas de telefone e de portadores de carteira de motorista, que eram artigos de luxo na época. Os respondentes eram majoritariamente membros da camada mais rica dos eleitores americanos.

Por isso, as menos de 3.000 pessoas entrevistadas por um instituto como o Datafolha, com diferentes perfis da população, são mais representativas da vontade do eleitorado como um todo do que 2,4 milhões de pessoas de uma única camada social – ou do que 50 mil pessoas reunidas numa manifestação a favor de um presidente, um ato que atrai apenas apoiadores desse político em específico.

Para que o eleitor possa conhecer os critérios de formação da amostragem utilizados nos levantamentos, os institutos disponibilizam em seus sites as pesquisas na íntegra, explicando quem foram os entrevistados.

Os dados podem ser comparados aos dados oficiais sobre o eleitorado nacional, disponibilizados no site do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e em levantamentos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre outras bases.

Como as perguntas são feitas

Outra diferença de pesquisas realizadas profissionalmente para qualquer tipo de avaliação de manifestações de rua ou enquetes feitas nas redes sociais de políticos diz respeito ao modo de fazer as perguntas para os entrevistados.

Nos levantamentos profissionais, há uma preocupação para que a formulação da pergunta não direcione o eleitor para uma ou outra candidatura – isto é, para evitar os chamados vieses.

O Instituto Datafolha, por exemplo, ao abordar um entrevistado na rua, apresenta a ele o nome dos candidatos de forma circular. A ideia é evitar que determinados nomes apareçam no topo de uma lista, o que poderia favorecê-los.

Neste caso também, o eleitor interessado em conhecer mais das pesquisas pode acessar as perguntas que foram feitas por cada instituto nos sites das instituições.

O histórico do Datafolha

Nenhum instituto de pesquisa, por melhores que sejam seus critérios de seleção de amostra, execução das perguntas e processamento dos dados coletados, é capaz de prever o resultado eleitoral.

Essas empresas costumam reforçar que seus levantamentos são “um retrato do momento” da campanha – algo que pode ser alterado pelas próprias estratégias dos candidatos, por acontecimentos inesperados ou até mesmo por um movimento de última hora pelo “voto útil” (voto dado a um candidato com maiores possibilidades de vitória, embora ele não fosse a primeira opção do eleitor que opta por essa estratégia).

Ainda assim, os institutos mais tradicionais de pesquisa tem um bom histórico de “acertos”. Nas eleições de 2018, por exemplo, o Datafolha apontava em agosto o favoritismo de Lula contra Bolsonaro, assim como o favoritismo de Bolsonaro sobre os demais, incluindo Fernando Haddad, caso o ex-presidente fosse impedido pelo TSE de concorrer – como ocorreu. Nos levantamentos seguintes, Bolsonaro e Haddad (que substituiu Lula na chapa petista) foram crescendo, com Bolsonaro sempre aparecendo à frente do petista, o que se confirmou no segundo turno.

Mesmo quando “erram”, a divergência entre os resultados das pesquisas e os resultados das urnas não aponta para fraude. Pesquisador sênior no Departamento de Ciência Política da Universidade de Zurique, na Suíça, e pesquisador vinculado ao Centro de Estudos da Metrópole, Victor Araújo analisou as pesquisas do Datafolha e do Ibope de 2002 a 2018: concluiu que, nas superestimações, partidos de direita foram beneficiados praticamente na mesma proporção do que partidos de esquerda.

“Das 503 estimativas disponíveis no agregador do PoderData, 184 delas (36,58%) foram superestimadas. No entanto, os dados revelam uma divisão bastante equilibrada (39,59% versus 34,68%) do viés de superestimação nas pesquisas conduzidas por Datafolha e Ibope”, escreveu Araújo para o Nexo Políticas Públicas.

A própria campanha de Bolsonaro parece se guiar pelas pesquisas eleitorais na hora de definir as estratégias para a conquista do eleitorado. Após as pesquisas mostrarem um mau desempenho do atual presidente entre as mulheres, o presidente passou a se dirigir com mais frequência a esse público, valendo-se inclusive da primeira-dama Michelle Bolsonaro.

A estratégia bolsonarista

Estudos da ciência política apontam que eleitores indecisos são mais propensos a votar no candidato apontado como favorito nas pesquisas de intenção de voto.

Não é de hoje, portanto, que campanhas contestam a validade de pesquisas eleitorais. Isso já foi feito inclusive por pessoas ligadas ao PT , partido que agora concorre contra Bolsonaro.

A peculiaridade de 2022, quando os números mostrados pelos mais variados institutos de pesquisa são bastante semelhantes, é que os ataques à idoneidade das pesquisas profissionais é feita de forma sistemática, por ministros e filhos do presidente , num contexto em que o próprio presidente ataca a credibilidade do sistema eleitoral brasileiro como um todo.

O general da reserva Augusto Heleno, que comanda o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, chegou a dizer no Twitter, no dia 8 de setembro, que as pesquisas eleitorais, com a amostragem que usam, não podiam ser publicadas ”. São um deboche à inteligência e quase certo que estão a serviço de algo ou de alguém. Só causam desconfiança!”, tuitou o aliado de Bolsonaro, ignorando os fundamentos da estatística.

Entram também na estratégia de Bolsonaro para minar o sistema eleitoral as intimidações aos ministros do TSE , a incitação ao desrespeito de ordens judiciais e a disseminação de boatos já desmentidos para gerar desconfianças infundadas em relação às urnas eletrônicas.

Nesse sentido, Rose Marie Santini, professora da Escola de Comunicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e diretora do Netlab, afirma que as investidas do presidente contra os institutos de pesquisa fazem parte de uma estratégia mais ampla de contestação do próprio resultado eleitoral, como Bolsonaro já ameaçou fazer em caso de derrota.

“A base bolsonarista é exposta frequentemente a pesquisas em que o Bolsonaro ganha”, disse ela ao site BBC Brasil. “Isso constrói uma pseudoevidência para contestar resultado da urna e questionar os institutos que usam metodologia científica para fazer pesquisas de opinião”, afirmou.

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