A baixa cobertura vacinal infantil na nova aceleração da covid
Mariana Vick
22 de novembro de 2022(atualizado 06/02/2024 às 10h59)Imunização de população de 6 meses a 11 anos tem ritmo lento e atrasos por falta de doses. Cenário deixa grupo vulnerável no contexto de aumento de infecções pela subvariante BQ.1
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Apesar da liberação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de vacinas da Pfizer e da Coronavac contra a covid-19 para bebês e crianças de até 11 anos, a imunização desses grupos está atrasada e lenta no Brasil, a despeito da capacidade do sistema de saúde de aplicar milhões de doses por dia.
A falta de vacinação expõe esses grupos a efeitos graves da covid-19 em um momento de nova aceleração da doença no país. Desde que o Brasil identificou a circulação da BQ.1, nova subvariante da ômicron, em outubro, as infecções voltaram a crescer em diversos estados e incentivaram governos locais a retomarem restrições .
O Nexo expõe o estado da vacinação infantil contra a covid-19 no Brasil e o que explica a baixa cobertura. Mostra também os dados mais recentes da pandemia, quais são os efeitos da covid-19 sobre crianças e como a baixa adesão à imunização contra a coronavírus se insere em um contexto mais amplo de queda da cobertura vacinal infantil nos últimos anos.
Segundo dados do Vacinômetro do governo federal, 70% das crianças de 5 a 11 anos receberam a primeira dose da vacina contra a covid-19 no Brasil, enquanto 50% receberam a segunda. O percentual é menor entre crianças de 3 e 4 anos: menos de 18% receberam a primeira dose e pouco mais de 6% completaram o esquema vacinal.
Os dados são da Rede Nacional de Dados de Saúde e foram atualizados até segunda-feira (21). A vacinação de crianças de 5 a 11 anos começou em janeiro de 2022 no Brasil, enquanto a vacinação de crianças de 3 e 4 anos começou em julho. O Vacinômetro não tem dados sobre a vacinação de bebês a partir de 6 meses, que começou na quinta-feira (17).
Menos de 0,2% das crianças de 3 a 4 anos ou de 5 a 11 anos recebeu alguma dose de reforço. Consideradas fundamentais para combater a variante ômicron, responsável pela maioria dos casos atuais de covid-19 no Brasil, a terceira dose só pode ser aplicada quatro meses após a segunda, e a maioria das crianças ainda não está apta para tomá-la.
5,9 milhões
é a população estimada de crianças de 3 a 4 anos no Brasil
20,5 milhões
é a população estimada de crianças de 5 a 11 anos no Brasil
O país tem usado duas vacinas na campanha infantil: a versão pediátrica da Pfizer, aprovada pela Anvisa para a população dos 6 meses aos 11 anos de idade, e a Coronavac, aprovada para crianças a partir de 3 anos. Desde setembro de 2021, adolescentes a partir de 12 anos já estavam se vacinando com a Pfizer comum.
A quantidade de crianças imunizadas é inferior à capacidade de vacinação do país. Segundo estimativa do governo federal, o SUS (Sistema Único de Saúde) é capaz de vacinar 2,4 milhões de pessoas por dia. Embora o sistema também precise dar conta da vacinação de adultos contra a covid-19, há espaço para vacinar mais crianças.
Levantamento do jornal Folha de S.Paulo mostra que a aplicação de vacinas tem ficado mais lenta à medida que a faixa etária apta a receber a imunização diminui. Enquanto o país vacinou 50% das crianças de 5 a 11 anos em três meses, apenas 1 a cada 10 crianças de 3 e 4 anos recebeu a primeira dose da vacina nesse mesmo intervalo de tempo.
De 5 a 11 anos
A Anvisa autorizou a aplicação da vacina pediátrica da Pfizer contra a covid-19 em crianças de 5 a 11 anos em dezembro de 2021. A campanha de vacinação para essa faixa etária começou efetivamente em janeiro de 2022. No mesmo mês, a agência também aprovou o uso da Coronavac para pessoas a partir de 6 anos.
A partir de 3 anos
A Anvisa aprovou o uso emergencial da Coronavac para a imunização de crianças de 3 a 5 anos em julho de 2022. Essa foi a primeira vez que crianças de 3 a 4 anos puderam receber o imunizante contra a covid-19 no Brasil. A campanha de vacinação do Ministério da Saúde para esse grupo também começou em julho.
A partir de 6 meses
A Anvisa aprovou em setembro a ampliação do uso da vacina pediátrica da Pfizer para pessoas de 6 meses a 4 anos de idade. A campanha de vacinação para esse grupo começou efetivamente dois meses depois, na quinta-feira (17), restrita a bebês de 6 meses a 2 anos com comorbidades (embora a Anvisa não tenha dado essa orientação).
A escassez de doses é o principal motivo para a lentidão na vacinação de crianças contra a covid-19 no Brasil, segundo profissionais de saúde, que criticam o governo federal pela falta de estoques. Identificado desde o início da campanha de vacinação infantil, o problema não é visto em outros países, como os Estados Unidos, onde a imunização está mais avançada.
Quando a Anvisa aprovou a vacina infantil da Pfizer em dezembro de 2021, o Ministério da Saúde fechou o contrato com a farmacêutica relativamente tarde para receber as doses pediátricas, o que levou o primeiro lote a chegar apenas na metade de janeiro, por exemplo. Mais tarde, a escassez da Coronavac levou municípios a suspender a imunização de crianças de 3 a 4 anos.
A suspensão mais recente ocorreu na sexta-feira (11). Governos locais têm dito que têm recebido vacinas a conta-gotas do Ministério da Saúde. Especialistas afirmam que a pasta ainda não comprou doses suficientes para o público infantil — o que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, nega .
A vacinação de crianças contra a covid-19 também foi alvo de ataques do presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia e desestimulada por órgãos do poder público, como o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, então comandado pela pastora Damares Alves (hoje senadora eleita pelo Republicanos do Distrito Federal).
“A molecada não sofre com o vírus… Tanto é que você viu um moleque morrer de vírus por aí? Alguém conhece algum filho de alguém que morreu de vírus? Não tem”
Em dezembro, quando a Anvisa aprovou a vacina da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos, o Ministério da Saúde resistiu a incluí-la na campanha nacional de imunização contra a covid-19. Convocou uma audiência e uma consulta pública sobre o tema (prática que é incomum) e sugeriu a exigência de receita médica para a vacinação, o que foi rejeitado.
Mais tarde, com a aprovação da Anvisa da vacina da Pfizer para bebês de 6 meses a crianças de 4 anos, o governo federal tomou uma nova medida. Em vez de incluí-la no plano de imunização para todo esse público, restringiu sua aplicação a bebês de até 2 anos com comorbidades, o que não foi orientado pela agência sanitária.
Em entrevista para o site Repórter Brasil em junho, o infectologista Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, chamou as ações do Ministério da Saúde de “ campanha contra a vacinação”. Complementa-se a isso a falta de uma campanha de comunicação com foco na imunização de crianças, o que também é criticado por outros profissionais de saúde.
Esse tipo de ação do governo federal tem o potencial de alimentar a hesitação vacinal e a desinformação sobre vacinas — outros motivos que podem explicar a baixa adesão à imunização de crianças. Apesar de terem filhos já elegíveis para se imunizar, pais e responsáveis relatam sentir medo das vacinas por não considerá-las seguras ou eficazes contra a covid-19.
Nenhuma dessas ideias é verdadeira. Tanto a Coronavac quanto a vacina pediátrica da Pfizer são seguras e eficazes no combate à pandemia. A Anvisa aprovou sua aplicação em crianças depois de técnicos do órgão terem analisado e aprovado estudos sobre o uso dos imunizantes nesse grupo. Os testes foram feitos em milhares de voluntários e observados por meses.
O quadro da vacinação infantil contra a covid-19 voltou a preocupar por causa da aceleração de infecções no Brasil desde o início da circulação da BQ.1, nova subvariante da ômicron. O país identificou o primeiro caso de um paciente infectado pela BQ.1 no dia 20 de outubro, no Amazonas.
Responsável por uma nova onda recente de covid-19 na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos, a BQ.1 se diferencia da ômicron original (e de outras de suas subvariantes) por ter maior capacidade de escape da proteção oferecida pelas vacinas. A ômicron é uma linhagem do coronavírus mais transmissível que se tornou dominante na maior parte do mundo a partir do fim de 2021.
Com a circulação da BQ.1, 12 estados brasileiros, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro, registraram aumento dos casos de covid-19 nas últimas quatro semanas, segundo boletim da Fiocruz divulgado na sexta-feira (18). Enquanto, hoje, o coronavírus responde por 47% de todos os resultados positivos para doenças respiratórias no Brasil, no fim de outubro ele respondia por 26,4%.
Em estados como São Paulo, o aumento de casos foi acompanhado pelo aumento de internações em UTIs (unidades de terapia intensiva) por covid-19. De 17 a 31 de outubro, as hospitalizações desse tipo cresceram 86% no estado, embora estejam em patamares mais baixos do que na fase mais grave da pandemia, em 2021. Por outro lado, o número de mortes por coronavírus não aumentou da mesma forma.
23,1%
foi a taxa de testes com resultado positivo para covid-19 (indicador que mede a circulação do coronavírus) na primeira semana de novembro, segundo a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica; no começo de outubro, essa taxa era de 3,7%
Além da circulação da nova subvariante, fatores como aumento das aglomerações, o relaxamento no uso de máscaras e a queda da imunidade dos vacinados (o tempo médio da proteção da vacina contra a covid-19 é de cinco meses) ajudam explicar a alta de casos, segundo profissionais de saúde. Fora isso, a cobertura vacinal caiu.
50%
da população total tomou a terceira e a quarta doses de reforço , segundo dados do consórcio de veículos de imprensa; patamar é baixo em comparação com 80% que receberam as duas primeiras doses
Em resposta ao aumento de casos, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou uma nota no dia 11 de novembro recomendando que a população retome práticas como usar máscaras em locais públicos, evitar aglomerações e tomar as doses de reforço disponíveis para cada faixa etária.
Em paralelo, governos locais e instituições voltaram a sugerir ou determinar restrições. Na sexta-feira (18), a prefeitura de Belo Horizonte passou a obrigar o uso de máscaras no transporte público e no sistema de saúde. O governo do estado do Rio de Janeiro voltou a recomendar na mesma data a proteção no transporte e em ambientes fechados.
Embora crianças tenham menos risco de desenvolver a forma grave da covid-19 em comparação com adultos, os efeitos da doença sobre esse grupo não podem ser ignorados, segundo cientistas. Mesmo em quantidade menor, existem casos graves, internações e mortes de crianças pela doença no Brasil.
Segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 30 mil crianças de 0 a 5 anos foram internadas com covid-19 no Brasil de 2020 até a semana do dia 12 de novembro de 2022, data do boletim mais recente da pasta sobre a doença. Cerca de 1.600 crianças nessa faixa etária morreram de covid-19 no mesmo período.
5
crianças de 0 a 5 anos morreram de covid-19 a cada três dias entre 12 de março de 2020 (data da primeira morte pela doença registrada no Brasil) e 12 de novembro de 2022, segundo o Ministério da Saúde
A pasta não divulga os dados da faixa de 5 a 11 anos nos boletins semanais que publica sobre a doença — apenas dos 6 aos 19. Segundo esses dados, cerca de 21.700 crianças e adolescentes dessa faixa etária foram internadas com covid-19 no Brasil desde 2020, e mais de 1.700 delas morreram.
Além dos sintomas comuns da covid-19, crianças infectadas com o novo coronavírus correm o risco de desenvolver síndrome inflamatória multissistêmica , doença rara que envolve a inflamação de diversas partes do corpo. Outra consequência para crianças vista em estudos é a chamada covid-19 longa , com sequelas no longo prazo.
Com a vacinação, as crianças podem se proteger contra o risco de se infectar pelo coronavírus e desenvolver as formas mais graves da doença, além de reduzir possíveis efeitos da covid-19 longa. Imunizado de forma ampla, esse grupo também diminui sua contribuição na transmissão do vírus no país.
Antigo exemplo para o mundo em vacinação com o sucesso do PNI (Programa Nacional de Imunizações), o Brasil caiu de patamar nos últimos anos devido aos baixos números de cobertura vacinal infantil — não só para covid-19, mas para outras doenças —, que estão em queda desde 2015. Em 2020, o país registrou o pior índice de imunização em mais de 25 anos, o que afetou a vacinação contra doenças como poliomielite, sarampo, caxumba e rubéola.
A redução da cobertura vacinal infantil tem diferentes explicações. A primeira delas é, paradoxalmente, o êxito das iniciativas de imunização no país. Segundo especialistas, há uma geração que não teve de lidar com surtos das doenças que a maioria das vacinas do PNI previne, o que leva pais, mães e responsáveis a deixarem de vacinar as crianças.
69,6%
foi a cobertura para tuberculose e a chamada vacina pentavalente (que cobre infecções como difteria, tétano e coqueluche) em 2019; quatro anos antes, ela havia sido de 94,9%, segundo o jornal Folha de S.Paulo
O quadro se agravou em 2020, quando a pandemia impactou a vacinação de rotina. A ausência de doses nos postos de saúde e o medo das famílias de irem a esses locais durante as fases mais críticas do isolamento social levaram à redução na cobertura vacinal de várias doenças e à piora dos números de infecções.
Outro fator que contribui para a queda da cobertura vacinal é o aumento dos movimentos antivacina. Apesar de pequenos no Brasil, esses movimentos mobilizam minorias vocais que divulgam teorias conspiratórias acerca de riscos infundados na imunização de crianças. Essas ideias também cresceram durante a pandemia.
Entre os resultados da queda da cobertura vacinal recente, está a volta da preocupação com a poliomielite , doença grave que causa paralisia (principalmente em crianças) e já foi considerada erradicada. Em 2022, novos casos da doença foram confirmados em países como os Estados Unidos. O Brasil registrou uma suspeita , que foi descartada .
O país tinha como meta vacinar 95% da população com menos de 5 anos contra a doença na campanha de imunização infantil de 2022. Em outubro, poucas semanas depois do fim da campanha, o Ministério da Saúde divulgou que não atingiu a meta, e apenas 65,7% do público-alvo foi imunizado. A adesão foi a menor em 40 anos.
Especialistas sugeriram caminhos para aumentar a cobertura vacinal infantil em entrevista ao Nexo . Entre eles, está a busca ativa dos governos de crianças que não se vacinaram, atuação entre diferentes setores da administração pública (não só o de saúde), a ampliação de horário para vacinação nos postos, o combate à desinformação e a criação de uma grande campanha nacional.
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