A tese de doutorado de Sueli Carneiro, agora como livro
Isadora Rupp
21 de março de 2023(atualizado 28/12/2023 às 17h20)Figura central do feminismo brasileiro lança obra de filosofia política que fala sobre o racismo e defende seu enfrentamento pela coletividade
A escritora e ativista Sueli Carneiro
Há 18 anos, a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro defendia na USP (Universidade de São Paulo) seu doutorado “Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser”. Nesta terça-feira (21), a tese é lançada como livro.
Na obra, que sai pela editora Zahar, Carneiro aplica o conceito de dispositivo do filósofo francês Michel Foucault (usado por ele para se referir a mecanismos institucionais) ao domínio das relações raciais. Antes de ser consolidada em livro, a tese teve mais de 35 mil downloads na internet.
O livro chega às livrarias no Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial , data que marca o massacre de Shaperville, em Joanesburgo (África do Sul). Em 21 de março de 1960, 69 pessoas morreram: elas protestavam contra a Lei do Passe, instituída no apartheid sul-africano, que exigia que pessoas negras portassem uma caderneta que dizia por quais partes da cidade elas tinham o direito de passar.
Neste texto, o Nexo apresenta a trajetória da autora e o conceito defendido no livro.
Nascida no bairro da Lapa, em São Paulo, em junho de 1950, Sueli Carneiro cresceu na Vila Bonilha, periferia da capital paulista. Filha de um ferroviário e de uma costureira, a filósofa e ativista vem de uma família de muita consciência racial, como definiu a biógrafa de Carneiro, Bianca Santana, autora de “Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro”.
A ativista antirracista é considerada uma das maiores teóricas feministas do país. Além da dedicação à academia, Carneiro também é uma das fundadoras do Geledés Instituto da Mulher Negra, que atua desde abril de 1988.
Segundo Santana, Sueli Carneiro começou o seu envolvimento com o ativismo político na década de 1970, por meio do Cecan (Centro de Arte e Cultura Negra).
De acordo com o artigo “Movimento de consciência negra na década de 1970”, do pesquisador Henrique Cunha Júnior, presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e professor da UFC (Universidade Federal do Ceará), o Cecan articulou ações e tornou-se importante pela expressão estética, disseminação de informações sobre a cultura negra e no combate ao racismo, com a proposta de construir um movimento negro popular .
“Sueli tem uma intensa e importante produção intelectual. Toda a sua produção teórica acontece para embasar ações em seu ativismo”, disse Bianca Santana ao Nexo em entrevista em junho de 2021.
Influenciada pela antropóloga, autora e intelectual Lélia Gonzalez , pioneira nos estudos sobre cultura negra no Brasil, Sueli Carneiro dedicou-se à produção no campo teórico sobre a mulher negra. Em 1985, publicou o livro “Mulher negra”, com a militante Thereza Santos e com a socióloga Albertina de Oliveira Costa, onde se debruçou sobre dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para compreender os pormenores da vida das mulheres negras em comparação à de outros grupos de mulheres no Brasil.
“A partir desse texto, que tem conta e dado, se prova as desigualdades das políticas públicas destinadas às mulheres negras”, disse Santana ao Nexo . “Ouso dizer que Sueli Carneiro foi uma das figuras centrais para enegrecer o feminismo no Brasil. Hoje, é difícil você encontrar qualquer grupo feminista que não trate raça como eixo importante ao se falar em feminismo. É uma característica importante do feminismo brasileiro.”
Sueli Carneiro foi a primeira mulher negra doutora honoris causa da UnB (Universidade de Brasília), título que recebeu em 2022, e Personalidade Literária do Prêmio Jabuti, no mesmo ano.
“As novas gerações devem conhecer Sueli porque é uma obrigação com os antepassados e com o futuro”
Em “Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser”, Sueli Carneiro explica o conceito que ela nomeou como dispositivo de racialidade – que produz uma dualidade entre positivo e negativo, tendo na cor da pele o fator de identificação do normal, representado pela brancura.
Pautada nos conceitos de biopoder do filósofo francês Michel Foucault e na teoria de contrato racial do filósofo afro-americano Charles Mills, a autora escreve que o contrato racial é o que estrutura o dispositivo de racialidade: um acordo de cumplicidade entre os brancos para a subordinação social e eliminação de pessoas negras.
Outro aspecto colocado pela autora que efetiva esse contrato é o epstemicídio, termo usado para definir a destruição de formas de saber locais, que busca inferiorizar o negro intelectualmente.
“O dispositivo da racialidade, como o entendo, beneficia-se das representações construídas sobre o negro no período colonial, no que tange aos discursos e às práticas que justificaram a constituição de senhores e escravos, articulando-os e ressignificando-os à luz do racialismo vigente no século 19”, escreve Carneiro na obra.
Para a autora, sua obra, escrita há quase 20 anos, “nunca esteve tão atual”. “Especialmente depois da experiência recente com o bolsonarismo, onde a dimensão fascista sempre esteve latente na sociedade. O supremacismo branco se expôs em um conjunto de coisas que eu relato neste trabalho, mas que até então estavam muito escondidas e distorcidas pelo mito da democracia racial”, falou Carneiro a jornalistas na quinta-feira (16).
“Eu pessoalmente nunca me empenhei em buscar publicação, nunca pedi para ninguém. Eu esperava e gostaria que o próprio departamento onde a tese foi defendida se ocupasse de fazer isso e não fizeram. Mas eu tinha convicção de que essa tese faria um caminho e eu fui me acostumando e me satisfazendo com o percurso que ela fez”, disse .
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