Expresso

O que houve de avanço e frustração na política indigenista em 2023 

Mariana Vick

15 de dezembro de 2023(atualizado 29/12/2023 às 20h03)

Derrubada no Congresso de veto à tese do marco temporal marca fim de ano de mudanças e desafios nas ações para povos originários. Impasses devem se estender até 2024

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FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 20.SET.2023

Homem indígena, com adereços tradicionais e pintura no corpo, é fotografado de perfil, quase de costas, contra a luz. O céu está azul. Atrás dele vê-se o prédio do Congresso Nacional.

Homem indígena participa de protesto em Brasília

A derrubada do Congresso Nacional na quinta-feira (14) ao veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à tese do marco temporal , que limita o direito à terra indígena aos povos que as ocupavam na data de promulgação da Constituição Federal de 1988, marca o fim de um ano de mudanças e desafios na política indigenista no Brasil.

O Supremo já considerou a tese do marco inconstitucional — portanto a legislação aprovada pelos parlamentares deve cair. O embate, porém, explicita a tensão que a questão indígena ainda gera no Brasil.

Lula assumiu o governo federal em 2023 depois de anos de medidas anti-indígenas adotadas nos anos de Jair Bolsonaro. Criou o Ministério dos Povos Indígenas e demarcou novos territórios , ao mesmo tempo em que o Supremo Tribunal Federal, depois de anos, declarou o marco temporal inconstitucional . Os avanços, no entanto, dividiram espaço com reações e ameaças às conquistas desses grupos, que devem se estender até 2024.

Neste texto, o Nexo lembra o que marcou a política indigenista do Brasil em 2023, com foco nas ações do governo federal, do Congresso e do Supremo. Mostra ainda como organizações indígenas se manifestaram em relação às ações adotadas nos últimos meses e quais são as perspectivas para o próximo ano.

Novo ministério e demarcações

O Brasil teve pela primeira vez em 2023 um ministério voltado aos povos indígenas. Lula criou a pasta no início do mandato, nomeando para o cargo de ministra Sônia Guajajara, uma das principais lideranças indígenas do país.

As funções do ministério incluem promover os direitos desses povos e gerir as terras demarcadas, englobando órgãos como a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), antes subordinada à pasta da Justiça.

Depois de quatro anos em que nenhuma terra indígena foi demarcada, o governo, com o trabalho do ministério e da Funai, registrou oito novos territórios em 2023. As áreas estão em diferentes partes do Brasil, da Amazônia ao Rio Grande do Sul. Outras 14 terras estão perto de concluir o processo de demarcação, mas ainda aguardam a homologação de Lula.

FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 26.ABR.2023

Grupo de indígenas vestindo adereços na cabeça. Um rapaz com o peitoral pintado olha para o lado.

Protesto de indígenas que participavam do Acampamento Terra Livre em Brasília

Apesar dos resultados, o ministério sofreu um revés no primeiro semestre. O Congresso aprovou em junho a medida provisória que define a estrutura do governo federal e tirou da pasta de Guajajara a atribuição de demarcar terras indígenas. A função foi passada para o Ministério da Justiça, que retomou o diálogo com a Funai para esses casos.

A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), maior organização indígena do país, protestou contra a decisão, puxada por parlamentares aliados do agronegócio. Lideranças do governo Lula no legislativo foram cobradas por não tentar reverter o resultado. Guajajara, por outro lado, afirmou em junho que tinha confiança de que as demarcações não seriam paralisadas sob a pasta de Flávio Dino.

A crise na terra Yanomami

O ano de 2023 também foi marcado pela crise sanitária na terra indígena Yanomami , em Roraima. O governo federal declarou emergência de saúde pública na região em janeiro depois de ter encontrado centenas de indígenas ali com doenças como malária e desnutrição severa . O quadro, ligado à presença do garimpo ilegal , teve repercussão dentro e fora do país.

Diferentes órgãos do governo empregaram recursos durante o ano para expulsar os garimpeiros da região. Outro foco das ações foi combater problemas de saúde que atingiam os indígenas, com a entrega de cestas básicas, a contratação de profissionais de saúde e a instalação de um hospital de campanha. Dados do Ministério dos Povos Indígenas e do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia mostram que houve impacto significativo:

82%

foi a redução de invasores e garimpeiros no território em 2023

40 toneladas

de cassiterita, 2 toneladas de ouro e cerca de 1.000 equipamentos usados para o garimpo foram apreendidos

80%

foi a redução da área ocupada por invasores, com impactos na vegetação e em rios como o Uraricoera e o Mucajaí, em Roraima

Apesar dos resultados, ainda há relatos de violência e vulnerabilidade social no território. Em maio, 14 mortes violentas de indígenas e garimpeiros foram identificadas em apenas uma semana na região, meses após o início das operações do governo. Reportagem do site Amazônia Real mostrou que, em novembro, parte dos invasores expulsos voltou à terra indígena.

Lideranças da Hutukara Associação Yanomami, organização que atua no território, afirmam que falta diálogo do governo federal para combater o garimpo de forma mais incisiva. “É chato. Falta sentar com os Yanomami e trabalhar juntos”, disse à Amazônia Real Ênio Mayanawa, coordenador político de saúde indígena da associação.

Marco temporal: Supremo e Congresso

Outra marca da política indigenista em 2023 foi o marco temporal. Depois de uma ação que tratava do tema ter ficado parada por dois anos, o supremo tribunal federal declarou a tese inconstitucional em setembro. o movimento indígena comemorou o resultado, que tem potencial de impactar todos os conflitos judiciais sobre o tema no Brasil.

A decisão, no entanto, não encerrou a discussão sobre o tema. Menos de uma semana depois do fim do julgamento no supremo, o Senado aprovou o antigo projeto de lei 2.903, que instituía o marco temporal e criava outros obstáculos para a demarcação e a proteção de terras indígenas. O texto teve o apoio de parlamentares da bancada ruralista.

FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 20/09/2023

Indígena presente no plenário do Supremo durante julgamento da tese do marco temporal

Indígena presente no plenário do Supremo durante julgamento da tese do marco temporal

A lei aprovada foi enviada para sanção, e Lula a vetou de forma parcial (ou seja, vetou apenas algumas partes do texto, enquanto deixou outras passar) em outubro. O trecho sobre o marco temporal caiu. De volta ao Congresso, no entanto, o veto foi derrubado por deputados e senadores na quinta-feira (14).

De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, houve um acordo entre governo e a bancada ruralista para que a derrubada do veto fosse parcial. O Congresso manteve três vedações feitas por Lula em outubro. A votação foi acompanhada de protestos do movimento indígena contra o marco do lado de fora da sede do Legislativo.

Os desafios que permanecem

O Ministério dos Povos Indígenas afirmou na quinta (14) que vai acionar a Advocacia-Geral da União para ingressar no Supremo com uma ação para garantir que a decisão da corte sobre o marco temporal seja preservada. Para a pasta, a lei aprovada pelo Congresso é inconstitucional. A Apib declarou que também vai recorrer ao Judiciário.

Esse é um dos desafios da política indigenista que devem se estender em 2024. Outros são os conflitos que continuam a ocorrer em terras indígenas, apesar das ações de diferentes órgãos do governo. Um servidor da Funai foi baleado neste mês durante uma operação de desintrusão de invasores no território indígena Apyterewa, no Pará.

FOTO: INDÍGENAS YANOMAMI, EM RORAIMA. FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 1º.JUL.2020/NULL

Jovens e crianças indígenas interagem em uma área verde. Um deles olha para a câmera.

Indígenas yanomami, em Roraima

Conflitos em áreas onde há disputas por demarcação, como a terra reivindicada pelos indígenas Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, também continuam a ocorrer. Os indígenas são alvos frequentes de ataques de fazendeiros e vivem sob condições precárias. Em outubro, o Ministério dos Povos Indígenas criou um gabinete de crise para acompanhar a situação, ainda não resolvida.

Há ainda projetos econômicos que podem afetar a proteção de terras indígenas, na avaliação de organizações. A Apib, por exemplo, elaborou um relatório contrário a propostas legislativas que podem ameaçar o meio ambiente, como o que amplia as regras para liberação de agrotóxicos. Já a ministra Sônia Guajajara demonstrou preocupação na quarta (13) quanto ao leilão feito naquele dia pelo governo que liberou a exploração de blocos de petróleo na Amazônia.

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