Afinal, o governo Lula está mais à esquerda ou mais à direita?
Isadora Rupp
28 de abril de 2024(atualizado 20/09/2024 às 17h30)Figura histórica do PT, José Dirceu diz que terceiro mandato do presidente é de ‘centro-direita’ por ‘exigência do momento histórico’. É isso mesmo? Sete cientistas políticos falam sobre o tema
O presidente Lula em sessão no Congresso Nacional para promulgação da reforma tributária
José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil do primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva, ex-deputado federal e um dos dos fundadores do PT, disse que o terceiro mandato do presidente Lula é de “centro-direita”, num seminário em São Paulo no dia 22 de abril.
“Lula montou um governo que não é de centro-esquerda, é um governo de centro-direita. Eu falo isso e todo mundo fica indignado dentro do PT. Mas essa é a exigência do momento histórico e político que nós vivemos”
José Dirceu
Ex-deputado e ex-ministro da Casa Civil, em evento da Esfera Brasil na segunda-feira (22)
Dirceu está de volta à esfera política após uma série de reveses. Em 2005, auge do escândalo do mensalão, deixou a Casa Civil e teve o mandato de deputado federal cassado. Em 2012, foi condenado pelo Supremo no esquema de corrupção que, segundo o tribunal, financiou a compra de apoio parlamentar no primeiro mandato de Lula.
De 2015 a 2018, Dirceu ficou preso. Em 2018, voltou à prisão, após condenações na Operação Lava Jato. Passou a responder em liberdade em 2019 depois de o Supremo mudar seu entendimento a respeito da necessidade de cumprimento de pena já após a condenação em segunda instância.
O ex-ministro da Casa Civil e um dos fundadores do PT, José Dirceu, em evento que marcou os 43 anos do partido
Em 2023, Dirceu foi absolvido de uma ação penal da Lava Jato e não descarta voltar a se candidatar a um cargo eletivo. A defesa do petista tem expectativa que outros processos sejam anulados. Caso isso ocorra, ele poderá concorrer em 2026.
Após a repercussão de sua fala em São Paulo, Dirceu divulgou uma nota dizendo que, na verdade, não é que o atual governo petista é de “centro-direita” — apenas tem “apoio de partidos de direita”.
O Nexo perguntou a sete cientistas políticos em qual lugar do espectro político o terceiro mandato de Lula se localiza. Veja abaixo as análises.
Celso Rocha de Barros
Doutor em sociologia pela Universidade de Oxford e autor de “PT, uma História”.
“O governo seria melhor caracterizado como centro-esquerda. Além das pautas ambientais, de costumes, de combate à pobreza, o Fernando Haddad [ministro da Fazenda] está tentando aumentar a tributação dos ricos, o que nenhum dos governos petistas anteriores tentou. Até entendo que o Dirceu quis chamar atenção para o fato de que há muitos direitistas no governo e na base aliada. Mas acho que centro-esquerda seria o melhor diagnóstico”.
Paulo Niccoli Ramirez
Cientista político e professor de Sociologia da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing)
“O que José Dirceu quis dizer é que, observando o fato de que Lula tem um pequeno número de congressistas no Congresso, ele se vê obrigado a fazer alianças para fora do escopo da esquerda. A partir do centro, como MDB e PSD, alguns projetos, como a reforma tributária, tiveram apoio do PP e do PL de Jair Bolsonaro. Apesar de alguns conflitos com os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), há muito diálogo com a direita para conseguir maioria no Congresso e aprovar os projetos.
Outro detalhe importante é que o governo, para aprovar a reforma tributária, teve que atender muitos interesses de bancadas como ruralistas e industriais. É claro que o governo Lula mantém a essência na esquerda, mas a parte pragmática, política, acaba convergindo para a direita. Caso contrário, Lula dificilmente teria governabilidade e ainda teria risco de impeachment. O que viria à tona é o que a gente chama de paralisia decisória, ou seja, um governo que não consegue aprovar nenhum projeto do Congresso em função de se distanciar da centro-direita, coisa que Lula não tem buscado fazer, porque sabe que isso tem um peso tremendo, haja vista o que aconteceu com o impeachment de Dilma Rousseff”.
Gabriella Maria Lima Bezerra
Cientista política, professora da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), pesquisadora do IPP-Cebrap e do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia da UFC (Universidade Federal do Ceará)
“Destaco dois elementos que dividem direita e esquerda: a compreensão do ordenamento social e a relação Estado e sociedade. A direita, em geral, pressupõe um ordenamento social mais orgânico. Como consequência, o Estado é visto como um agente regulador, que deve promover a ordem e a segurança, sem interferir na dinâmica social ou promovendo interesses e valorações.
Na esquerda, o imperativo é a igualdade e a ação política voltada para redução das hierarquias e desigualdades, independente de suas origens ou justificações morais. Como consequência, o Estado é chamado à ação e promoção da igualdade, em oposição a uma imagem de regulação.
Sobre a declaração de Dirceu, especulo que existam duas interpretações. Por um lado, a fala indicaria uma crítica ao governo, buscando tensionar seus acordos e seu perfil estratégico, indicando o desejo que pudesse caminhar para o que seria um governo de centro-esquerda. Por outro lado, pode indicar uma compreensão mais ampliada da governação, entendendo a composição com os demais poderes e atores políticos relevantes, tendo em vista o crescimento da direita. Não só na expressão partidária e composição das casas legislativas, mas como uma tendência social compartilhada, seus valores e crenças, no caso brasileiro.
Gratuita, com os fatos mais importantes do dia para você
Não teria dúvidas em classificar o governo Lula 3 como de centro-esquerda. Não só nas propostas, ações e pautas centrais do governo, mas também nos seus posicionamentos e indicações públicas. Sabemos que há uma composição ampliada no governo, com participação de figuras políticas associadas à centro-direita. Isso não significa que eles sejam a expressão do governo, ou que, na sua atuação, predomine as pautas conflitantes entre os perfis ideológicos, nem que seja uma novidade na história dos governos petistas. Não se pode conceber uma realidade política em que não haja interseções entre grupos e ideologias. A participação desses atores se harmoniza com os interesses e concepções da centro-esquerda.
A indicação de Dirceu é interessante para pensarmos a própria ideia de governar. Ela não é apartada de composições que nem sempre serão as pretendidas pelo partido ou apoiadores, ou pelo próprio candidato vitorioso. As contradições e conflitos estão presentes constantemente, podendo se atenuar ou se acentuar. As dificuldades hoje aparentam ser maiores para a esquerda e para o governo Lula: sua aprovação não é como outrora, a direita não é mais envergonhada, a bancada petista é reduzida e os presidentes das casas acumularam poderes de agenda.”
Creomar de Souza
Doutor em Política Comparada pela UnB (Universidade de Brasília), fundador da consultoria de análise política Dharma e professor da Fundação Dom Cabral
“O melhor jeito de responder essa pergunta é apresentando um contexto. Nos últimos anos, nós temos visto uma puxada de um referencial de observação da política nacional, e da política como um todo, que eu gosto muito de usar, que é o conceito da janela de overton [cunhado pelo cientista político Joseph Overton. Resumidamente, se trata de ideias políticas que eram tabu e se tornam aceitáveis]. Esse movimento da direita mais extremada e reacionária têm sido muito eficaz em fazer um exercício de parecerem normais e de irem jogando outros atores mais à esquerda. Esse é um processo que vem de muito tempo. Se você perguntar para Jair Bolsonaro ou para o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) se eles são de extrema direita, eles vão dizer que não. Vão dizer eles são de centro-direita ou, no máximo, de direita. E, com isso, empurram outros grupos à condição de radicalismo. Me parece que existe uma batalha pela interpretação do espectro político, de onde as forças políticas se colocam.
Passando do componente conceitual para a interpretação do processo atual, vou usar a frase que um deputado usava no primeiro governo Lula: Lula ganha eleição com a esquerda e governa com a direita. É óbvio que, há 20 anos, a situação era distinta. Hoje, temos um movimento mais interessante, no sentido em que Lula, por opção pessoal, fez o melhor esforço, até aqui, para que esse governo tivesse sinalizações de que era um governo de coalizão nacional. Foi atrás de um antigo rival, que é Geraldo Alckmin. Fez um esforço para acomodar Simone Tebet em um ministério relativamente importante, que é o Ministério do Planejamento, e fez sinalizações a membros do centrão para que eles entrassem em ministérios. Isso nos dá um espaço de interpretação de que esse é um governo de centro-esquerda, de um presidente de esquerda, com esforço de dialogar com o centro.
O grande problema, quando a gente fala em centro no Brasil em 2024, é que o centro foi erodindo. Políticos, candidaturas, nomes que eram mais deste centro, foram perdendo espaço e sobrou o centrão fisiológico do Congresso Nacional. Se a gente for tentar categorizar, a gente poderia dizer que Lula tentou construir, com alguma dificuldade, uma coalizão de centro que abre arcos com nomes mais à direita. Do ponto de vista prático, essa coalizão, arranjada meio que naquilo que sobra de espaço nesse ambiente político polarizado, tem dificuldade de sustentabilidade.”
Ivan Henrique de Mattos e Silva
Professor de Ciência Política da Unifap (Universidade Federal do Amapá), e vice-coordenador do Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal
“Antes, é importante pontuar como definir direita e esquerda, que são conceitos muito utilizados mas que carecem de uma definição mais rigorosa. Eu sempre gosto de me pautar pela definição clássica do Norberto Bobbio [filósofo político italiano]. No livro, ‘Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma distinção política’, ele diz que, o que separa direita de esquerda, fundamentalmente, é a rejeição ou aceitação das desigualdades com uma ordem natural do mundo. Embora não sejam blocos monolíticos, pois há gradações à esquerda e à direita, há esquerdas e direitas democráticas e não-democráticas, o que separa um campo do outro, o ponto de inflexão, é a aceitação ou rejeição das desigualdades como naturais. Acho que isso é importante para pensar se o governo Lula 3 está à direita ou à esquerda.
Embora o lulismo enquanto fenômeno político, para usar o conceito do cientista político André Singer, tenha se pautado desde sempre por uma conciliação de classes, de interesses, de partidos e grupos políticos, talvez esse seja o escopo de aliança mais heterogêneo que Lula já produziu.
É difícil fazer uma avaliação geral do governo Lula. Pela dinâmica dessa composição de um grande arco de alianças, há áreas mais à esquerda e áreas mais à direita. Alguns ministérios mais claramente vinculados ao campo da esquerda, como Direitos Humanos, das Mulheres e dos Povos Indígenas, e alguns ministérios mais vinculados ao campo da direita, como o Ministério da Fazenda. Com Fernando Haddad e o arcabouço fiscal, a regra econômica e fiscal caminhou para esse campo [da direita]. Isso também é uma característica dos governos Lula. Se a gente pegar a questão agrária, por exemplo: tem o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, mais vinculado à pequena agricultura e à questão da reforma agrária, e há o Ministério da Agricultura e Pecuária, mais vinculado ao agronegócio e ao latifúndio.
Essa definição mais ampla do governo Lula está em aberto, e em disputa, inclusive, interna e externamente. Acho difícil, assumindo o que define o que é direita e esquerda, o processo de resgate à políticas sociais e exclusões, que foram em grande medida descontinuadas e desconfiguradas no período Temer-Bolsonaro, colocar o terceiro mandato de Lula no campo da direita. Ainda está no campo da centro-esquerda, mas, em comparação com o governo Lula 1, caminhou ao campo do centro.”
Viviane Gonçalves
Doutora em Ciência Política pela UnB (Universidade de Brasília), professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e subcoordenadora do Nepem (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher), vinculado à universidade
“Desde a campanha eleitoral de 2022, já era sabido que a chapa Lula-Alckmin buscava uma frente ampla, a começar, inclusive, por sua própria constituição. O que acompanhamos foi a imagem de dois adversários de outros pleitos, que eram de campos ideológicos e de partidos diferentes, mas que, naquele momento, passavam a dividir o mesmo objetivo, na mesma direção.
O terceiro governo Lula não tem sido similar aos dois anteriores (embora haja reedição de alguns programas sociais), até mesmo porque o contexto brasileiro é outro. O Congresso também, além de outras demandas e agendas políticas que se fazem presentes e pressionam, tanto no campo político, quanto no social. Mais do que um presidencialismo de coalizão, não é possível querer encaixar o cotidiano da política em categorias exclusivas. A realidade prova, a todo momento, que, em especial na política brasileira, talvez o maniqueísmo de uma classificação compulsória não seja o melhor caminho de análise. Os conceitos clássicos devem ser compreendidos como o início do entendimento, não o fim em si mesmo.
Com a formatação do ministério como foi constituído e com as alterações que já ocorreram – só para ficar em um exemplo, leio o atual governo Lula como de centro-esquerda, com importantes aproximações com atores/atrizes à direita, inclusive, visando à governabilidade. Esse era o sentido da frente ampla. Pode parecer um pouco decepcionante para algumas pessoas, principalmente se lembrarmos o sentimento de terra arrasada de pouco tempo atrás. No entanto, um governo se molda também a partir das forças que estão a seu redor – e isso faz toda a diferença.”
Luciana Santana
Doutora em ciência política, professora da UFAL (Universidade Federal de Alagoas) e do programa da pós-graduação em ciência política da UFPI (Universidade Federal do Piauí)
“Assim como o primeiro e segundo mandato, é um governo que reúne forças da esquerda, centro e direita. Apesar de o presidente se localizar, do ponto de vista ideológico, na centro-esquerda, é um governo que aglutina forças da esquerda à direita. Não há coesão desses pólos. É um governo que gravitaciona no centro e é constrangido pela direita e esquerda.
Desde 2002, Lula colocou como vice um ator da direita [José de Alencar, do então PFL]. Dessa vez, o presidente precisou ampliar ainda mais as alianças após ganhar a eleição. José Dirceu está correto quando pensamos pragmaticamente a composição. Se contarmos o peso eleitoral de partidos de esquerda que estão no governo, ele é muito menor do que os de direita. Do ponto de vista da denominação, a gente poderia dizer que é um governo de centro-direita, realmente. E até das pautas. O que saiu e o que é prioritário? Reforma tributária, arcabouço fiscal. São muitas pautas de interesse da direita que se sobressaem. Zé Dirceu deve ter sofrido uma pressão do PT para se retratar, mas ele não está errado.”
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