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Luciana Brito

Notícias de Salvador: a branquitude baiana, suas escolhas e desilusões

14 de setembro de 2020

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O tratamento especial, a afinidade e a deferência que brancos dedicam a outros brancos no mercado de trabalho é responsável por criar fantasias e histórias de terror

No domingo à noite, ainda com dúvidas sobre o que escrever para esta coluna, resolvi me distrair assistindo à série “Lovecraft Country”, lançada este ano nos Estados Unidos. A série faz parte de uma tendência que, desde o filme “Corra!”, reflete uma decisão de cineastas negros daquele país — abraçar o gênero do terror. Misturando esse estilo com ficção científica, cineastas como Jordan Peele (que produz a série e dirigiu o filme) têm encontrado no terror uma forma de dar um recado aos racistas de plantão: viver numa sociedade racista e suportar a violência e a perversidade da branquitude é, para as pessoas negras, viver um pesadelo, e portanto um terror na vida real.

O episódio mais recente de “Lovecraft Country” mostra a saga de Ruby Baptiste, uma mulher negra bonita e inteligente, que tenta obstinadamente conseguir um emprego como vendedora numa loja branca de uma cidadezinha segregada do Sul dos EUA na década de 1950. Ruby, a despeito da qualificação profissional e do perfil para assumir o emprego, esbarra no racismo, e sabe que esse é o motivo pelo qual foi rejeitada para a vaga. Até que Ruby recebe um proposta quase que tentadora: submeter-se a um experimento científico e tornar-se branca.

A princípio a personagem vacila diante da proposta, mas acaba aceitando fazer parte da experiência. Ela então torna-se branca e vive os privilégios do racismo: é bem tratada como cliente dos lugares por onde passou, inclusive vivenciando pela primeira vez gozar da confiança dos prestadores de serviços, que lhe permite pagar depois, e não antes de consumir, como de costume. Ela recebe a gentileza e simpatia dos seus novos pares e obviamente consegue o emprego que tanto queria, sendo imediatamente admitida como supervisora. Ela é elogiada pelo mesmo currículo que apresentava quando assumia sua personalidade real, de mulher negra. Ruby mergulha no mundo branco e escuta e vê de tudo: aquilo que pessoas brancas não têm coragem de dizer na frente de pessoas negras, seus preconceitos e seu racismo e a curiosidade das mulheres brancas de fazerem sexo com homens negros, frequentarem seus espaços de lazer, desbravarem o gueto por alguns instantes, realizando suas fantasias sexuais reprimidas. Percebe que nem sempre são honestos, que roubam, que mentem, que invejam e que não suportam ver pessoas negras felizes, o que é visto como uma transgressão da ordem.

Até que Ruby se cansa da experiência e diz que prefere viver permanentemente no seu corpo real, de uma mulher negra. Aí a série apresenta uma fala que me inspirou para a coluna. Sua interlocutora na cena, uma mulher branca que lhe oferece a poção mágica, ou científica,não esconde a surpresa e diz algo mais ou menos assim: “Eu não lhe dei somente a chance de ser branca. Eu lhe dei mais do que isso: dei a chance de você ser livre, livre para fazer e ser o que você quiser”.

A trama, de forma muito bem feita, estava falando daquilo que o sociólogo estadunidense W.E.B. Du Bois descrevia como um “salário psicológico ” conferido a pessoas brancas trabalhadoras, que a despeito de serem trabalhadoras, eram dotadas de um “salário público”, custeado pela exclusão das pessoas negras. Esse salário não significava necessariamente dinheiro, embora traga ganhos financeiros, mas representa a deferência pública, o compromisso, cumplicidade racial e empatia conferidos às pessoas brancas, pobres ou não. Isso se dá por meio de um tratamento pessoal especial, de afinidade que acabava produzindo acúmulos de privilégios.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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