O sono da democracia produz monstros
Marcos Nobre
09 de setembro de 2020(atualizado 28/12/2023 às 12h51)Acostumando-se a viver com fantasmas, por decisão deliberada ou não, o campo democrático prepara mais um pesadelo autoritário para o país
Com a pandemia, uma janela para o afastamento de Bolsonaro se abriu no primeiro semestre de 2020. Mas não foi ocupada. Por que não?
Muitas respostas estão disponíveis, muitas são as razões. Mas talvez esteja faltando uma que é decisiva. Uma razão que explique por que não existe oposição e por que não se formou a frente ampla necessária para que o impeachment pudesse avançar. Acho que no primeiro semestre o debate público mainstream e o sistema político como um todo só confirmaram para si mesmos uma convicção que os faz girar em falso desde a eleição de 2018: tanto quem forma opinião quanto os partidos continuam agindo como se o governo Bolsonaro fosse mera continuidade do governo Temer.
A prioridade de quem se coloca no campo da democracia hoje não é derrotar o verdadeiro inimigo, que é Bolsonaro, mas seu adversário histórico. Um adversário que pertence a um passado que Bolsonaro já enterrou, aquele em que PT e PSDB representavam os dois polos organizadores da política. O adversário de um mundo que já não existe mais.
De maneira interessada ou não, democratas se encontram em estado de negação da realidade. A premissa da continuidade entre os governos de Temer e de Bolsonaro é irreal porque a magnitude da ameaça à democracia em cada um dos casos é incomparável. Ao mesmo tempo, a premissa é a mais real possível porque polariza de fato as disputas entre os campos democráticos da direita e da esquerda. As forças políticas que não partem dessa premissa, que querem evitar a polarização nesses termos, ficam sem lugar e sem espaço. O que acaba reforçando ainda mais a própria polarização, que se torna incontornável.
À direita, ataca-se no governo Bolsonaro tudo o que não é governo Temer. E, para ficar com a consciência democrática limpa, ataca-se também ministérios e órgãos de aparelhamento explícito da extrema direita e apessoa e aatitude de Bolsonaro, como se fosse possível dissociar Bolsonaro do governo que dirige. Em todo o resto, continua-se a pensar e agir como se de governo Temer se tratasse.
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