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Em minha última coluna , discuti o impulso a mecanismos de governança federativa na educação dado pelos incentivos financeiros criados pela Emenda Constitucional 108 , que perenizou o Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação). Pelo menos um dos meus objetivos foi alcançado: chamar a atenção de gestores estaduais e municipais, não apenas da educação, mas também das áreas de planejamento e fazenda.
Com efeito, dezenas de secretários estaduais e municipais dessas pastas entraram em contato para informar de suas ações, discutir dúvidas sobre a legislação e esses arranjos colaborativos, bem como solicitar apoio para sua concepção. De um lado, conheci iniciativas interessantes, já em curso ou em fase final de elaboração. De outro, confirmei que, além dos que ignoravam a urgência do tema, para muitos ainda restam diversos questionamentos sobre os efeitos desse novo dispositivo constitucional. Aqui tento responder a algumas dessas questões, além de abordar outros assuntos ligados aos dispositivos da Emenda Constitucional nº 108 e da lei que a regulamentou que, por limitações de espaço, não tratei anteriormente.
A mudança na lei estadual do ICMS é suficiente para cumprir a condicionalidade referente ao regime de colaboração constante da lei de regulamentação do Fundeb? Essa é a dúvida mais comum entre os gestores públicos. A meu juízo, a resposta honesta é “não”, mas há imprecisões e lacunas legais que podem fazer com que as mudanças no ICMS bastem. Se assim for, a potência desse incentivo trazido pela Emenda Constitucional 108 será reduzida consideravelmente. São dois os motivos que podem levar a esse cenário indesejado.
O primeiro é uma fragilidade da Lei 14.113/2020, aprovada às pressas e com base em um projeto de lei pouco discutido em função da urgência de regulamentar a entrada em vigor do novo Fundeb. O inciso IV do artigo 5º dessa Lei estabelece como uma das condicionalidades para elegibilidade aos recursos da União a serem distribuídos por resultados educacionais o “regime de colaboração entre estado e município formalizado na legislação estadual e em execução, nos termos do inciso II do parágrafo único do art. 158 da Constituição Federal e do art. 3º da Emenda Constitucional nº 108, de 26 de agosto de 2020”. Ora, a interpretação literal desse enunciado conduz-nos a concluir que o legislador entende que o simples rateio do ICMS com base em avanços educacionais (ou seja, o trecho nos termos do inciso II do parágrafo único do art. 158 da Constituição Federal e do art. 3º da Emenda Constitucional nº 108 ) constitui o regime de colaboração entre um dado estado e os municípios que o compõem. Esse não é, contudo, o entendimento dos especialistas e gestores públicos que estudaram e/ou criaram os exemplos de regime de colaboração na educação básica brasileira.
No atual contexto brasileiro, é possivelmente na educação infantil que se encontra o mais fértil campo para iniciativas de colaboração
Por exemplo, em sua tese de doutorado , por sinal o melhor estudo analítico sobre os modelos de cooperação intergovernamental na educação, Catarina Segatto aponta que, além da redistribuição de recursos, o nível de institucionalização é outra componente essencial para categorizar e avaliar a cooperação subnacional nas políticas educativas brasileiras. Andre Loureiro, Louisee Cruz, Ildo Lautharte e David K. Evans, por sua vez, apontam a assistência técnica prestada aos municípios cearenses pela Secretaria de Educação do Estado como um dos dois principais pilares do regime de colaboração federativa mais bem-sucedido do país em termos de resultados de aprendizagem – note-se, por relevante, que esses autores destacam a assistência técnica em um Working Paper elaborado para o Banco Mundial cujo principal objeto de análise é o modelo de financiamento desse regime. Fernanda Castro Marques, coordenadora-geral do Movimento Colabora Educação, consolida esses ensinamentos no Nexo Políticas Públicas , ao apontar aspectos como a institucionalização, o envolvimento dos atores educacionais e a adoção de estratégias sistemáticas, mas com olhar territorial, como componentes cruciais dos bons exemplos de regime de colaboração no país. Reduzi-lo, portanto, ao simples rateio do ICMS seria um grande erro.
u0009O segundo maior risco decorre de uma omissão legislativa: não existe qualquer definição legal ou conceitual sobre o que é regime de colaboração. Por incrível que pareça, inscrevemos na Constituição Federal uma expressão sem definição legal e, mais de 30 anos depois, não a produzimos. O que é pior: a lei que regulamenta o novo Fundeb silenciou sobre o tema, ainda que tenha estabelecido que a implementação e a execução do regime de colaboração são requisitos obrigatórios para que os entes subnacionais sejam elegíveis aos recursos do VAAR (Valor Aluno Ano por Resultados) a ser distribuído pela União.
A falta de definição legal gera grande confusão entre os gestores públicos, a tal ponto que as perguntas “o que será considerado regime de colaboração” e “quem decidirá o que constitui ou não regime de colaboração” foram também muito comuns entre os questionamentos que recebi desde a publicação da última coluna. Infelizmente, não há nenhum esforço atualmente no Congresso Nacional para superar essa debilidade. Os dois projetos de lei ( 3339/2021 e 3418/2021 ) hoje em tramitação na Câmara dos Deputados para alterar a lei que regulamentou o novo Fundeb sequer abordam essa lacuna. Logo, ela ficará para ser preenchida por regulamentação do Executivo Federal, com todos os riscos que isso significa em se tratando da péssima gestão educacional da administração Bolsonaro.
Essa omissão legal não decorre de falta de conhecimento produzido pela academia, pela sociedade civil organizada e, sobretudo, pelos gestores públicos do país. O melhor e mais abrangente repositório de exemplos desse tipo de cooperação federativa é o Guia de Regime de Colaboração – Estados-Municípios , que contou com o apoio do Consed e da Undime e foi elaborado pelo Movimento Colabora Educação , única iniciativa da sociedade civil dedicada exclusivamente ao regime de colaboração nas políticas educacionais. Nele é possível identificar os elementos constitutivos de diferentes exemplos, bem como diferenciar iniciativas mais e menos institucionalizadas e robustas (em linha com a categorização proposta por Segatto em sua tese de doutorado), além de conhecer dicas úteis para construir e gerenciar esses mecanismos.
Se não faltam conhecimento sistematizado e exemplos concretos, cumpre-nos perguntar: por que o Congresso Nacional prefere silenciar sobre o tema? Ele quererá enfrentar essa sua omissão e deliberar sobre algo que, na prática, vai se traduzir em uma disputa distributiva? Hoje, reitero, não há vontade política alguma para isso. O Congresso Nacional então preferirá deixar para o Governo Federal decidir isso por meio de Decreto ou Medida Provisória?
O fato é que que essa lacuna legal, associada à interpretação literal da lei regulamentadora do novo Fundeb, pode levar à virtual esterilização dos incentivos financeiros à cooperação dos estados com seus municípios, obliterando, dessa forma, esse importante mecanismo de indução à melhoria da qualidade e, principalmente, dos resultados da educação.
Mas elas não são as únicas. Outra questão que devemos indagar diz respeito aos beneficiários do VAAR. Quantos serão? A lei que regulamentou o novo Fundeb apenas definiu, vagamente, os requisitos de elegibilidade, mas em nenhum momento estabeleceu um mecanismo de distribuição desses recursos. Serão beneficiados os top 10%, top 20%? Todos que cumprirem as condicionalidades e apresentarem melhorias educacionais medidas pelos indicadores sugeridos pela lei poderão receber? Preferiremos um modelo mais “igualitário”, que beneficie (no curto prazo) a todos, ou transformaremos esse instrumento de fato em uma alavanca para promover melhores aprendizagens? Se todos puderem receber, os recursos provavelmente serão insuficientes para provocar mudanças efetivas. Da mesma forma, se os requisitos se restringirem às novas regras de rateio de parte do ICMS, o êxito cearense dificilmente se repetirá em outras unidades da federação. Não nos enganemos: há muitos atores no ecossistema educacional que preferirão a vertente mais “igualitária”, mas que é também estéril.
Mesmo que superemos esses riscos, o êxito do regime de colaboração não será imediato no país. Com efeito, tanto Fernanda Marques como Andre Loureiro et al apontam outros elementos como necessários para o êxito dessas iniciativas, tais como: (i) municipalização das escolas de ensino fundamental (sobretudo anos iniciais, etapa onde ainda existem quase 1,9 milhões de estudantes matriculados em escolas públicas estaduais); (ii) servidores públicos qualificados no nível central e regional, bem como nas escolas; e (iii) sistemas de monitoramento e avaliação dos resultados de aprendizagem abrangentes, rápidos em suas respostas e efetivamente utilizados pelos gestores e professores para planejar seus planos de aula. Como indiquei na coluna anterior, além desses componentes estruturais, é preciso entender que o regime de colaboração não pode e não deve se focar apenas na alfabetização na idade certa, objetivo inicial da experiência cearense (posteriormente ampliada). No atual contexto brasileiro, além da alfabetização, é possivelmente na educação infantil que se encontra o mais fértil campo para essas iniciativas de colaboração, tanto em função do ainda precário acesso e da baixa qualidade dessa etapa da educação básica, como também em função de seus enormes retornos para os indivíduos e a sociedade.
De qualquer forma, os recursos do VAAR começam a ser distribuídos em 2023. Logo, a urgência é grande. O que será feito pelas autoridades federais, estaduais e municipais?
João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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