Coluna

Reinaldo Moraes

Manaus não há mais

26 de agosto de 2016

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Ao chegarmos ao nosso destino, ficou patente o quanto o meu amigo Manaus não se reconhece mais na Manaus que o viu nascer. Já não existem mais os charmosos igarapés que cortavam a cidade à maneira dos canais de Veneza

Muito antes de conhecer a cidade de Manaus, eu conheci o Manaus, apelido pelo qual o escritor manauara Milton Hatoum ficou conhecido em São Paulo, quando veio morar aqui nos anos (19)70 para cursar a faculdade de arquitetura da USP, a FAU. Mas não foi em São Paulo que nos conhecemos, e sim em Barcelona, em 1980, onde ele vivia como bolsista e eu passava minhas férias de verão. Nessa época eu morava em Paris, também com minha bolsinha a tiracolo, claro, pois nenhum de nós tinha um pai nababo. O Brasil que havíamos deixado provisoriamente para trás vivia o início da derrocada da ditadura militar, em meio aos rombos na economia provocados pela megalomania autoritária dos milicos. Na Europa, e em especial na Espanha, que se livrara havia pouco tempo de sua longeva e obscurantista ditadura franquista, o clima era de liberdade e de otimismo com os rumos do país e da Europa.

Por esse tempo, eu batucava numa Olivetti 32 portátil meu primeiro romance – romancinho, na verdade -, enquanto o Manaus formulava gráficos e mapas da trama do que deveria ser a sua primeira obra literária, também um romance. (A gente era metido pra caramba.) Visitando sua casa no bairro de Gràcia, com esse acento grave, na capital da Catalunha, pude ver as paredes forradas de cartolinas contendo diagramas que retraçavam as origens familiares e a teia de relações (quase ia escrevendo “ralações”, e não estaria de todo errado) entre seus personagens, inspirados, em grande parte, na sua própria família, vinda do Líbano nos anos (19)40.

O romance do Milton, que deveria se chamar “Cinzas do norte”, teve uma primeira versão que foi parar, não nas estantes das livrarias e nas mãos dos leitores, mas na lata de lixo do próprio autor, insatisfeito com o resultado. Uma nova versão, matadora, só viria a lume em 2005, depois que o Manaus já nos tinha dado dois marcos da moderna prosa ficcional brasileira, “Relatos de um certo oriente” e o extraordinário “Dois irmãos”, romances que abordam histórias fortes, eventualmente trágicas, envolvendo imigrantes árabes no norte do país.

Pois bem. (Nada como um “pois bem” pra se mudar de assunto.) Voltei ontem de Manaus, a capital do estado do Amazonas, onde estive em companhia do Manaus a entrevistá-lo para o programa “Viagem de bolso”, produção da Mira Filmes que será exibido no ano que vem pelo canal a cabo “Cine Brasil TV”, como já devo ter repetido aqui umas mil vezes. (Não percam!)

Milton se deslocou no mesmo avião que a nossa enxuta equipe de filmagem pra capital amazonense, pois mora há quase duas décadas em São Paulo, casado com uma paulista e pai de dois filhos igualmente paulistanos. Pra ele, que não pisava no solo natal há um certo tempo, foi uma autêntica viagem sentimental, por motivos óbvios, um dos quais ainda devo mencionar neste texto, se não me perder pelo meio do caminho.

Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

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