Temas
Compartilhe
Antônio Cândido, um dos maiores intelectuais brasileiros, nos ensinou que o acesso à literatura deve ser pensado como um direito humano. Na sua concepção, deveríamos nos mover coletivamente para derrubar as barreiras que impedem as pessoas de terem acesso aos diferentes níveis de cultura existentes nas sociedades mundo afora. Negar o direito à fruição da literatura significa mutilar a humanidade de um povo, disse Cândido em seu artigo “O direito à literatura”, que hoje releio como um manifesto contra o obscurantismo que nos governa.
Não há outra forma de compreender a proposta que prevê a taxação dos livros em 12%, defendida pela equipe econômica de Paulo Guedes, senão como mais uma iniciativa do fascismo para avançar em seu projeto de desintegração do tecido social brasileiro. Na justificativa apresentada publicamente se condensa o conteúdo preconceituoso e reacionário. Baseando-se em dados da Receita Federal e numa interpretação enviesada da Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o governo quer nos fazer crer que “ler é coisa de rico”, já que famílias que ganham até dois salários mínimos não figuram entre as principais compradoras de livros.
Pois bem, essa afirmação contrasta com os dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que aponta a classe A como o segmento que mais diminuiu o fluxo de leitura nos últimos cinco anos. É possível que a intensa ode à ignorância promovida pelo presidente esteja fazendo efeito em amplos segmentos da burguesia, que abandonaram o hábito da leitura justamente nesse período de intensa crise social e econômica, agravado pela tragédia sanitária.
Outra faceta nefasta dessa política é o efeito sobre as pequenas e médias editoras e livrarias de nosso país. Desde 2004, o mercado editorial foi isentado do pagamento do PIS (Programa de Integração Social) e da Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). De acordo com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, a instituição de uma nova política tributária significaria um valor equivalente a 60% do lucro bruto de uma editora e 50% do lucro de uma livraria. O sindicato também nos mostra que 2020 foi um ano de leve recuperação do mercado editorial brasileiro, que terminou o ano com aumento de 0,87% nas vendas e movimentou R$ 1,74 bilhão. Ao dificultar o acesso, a tributação deve inverter essa tendência.
O fato é que o apreço pela concorrência que os ultraliberais afirmam prezar, na verdade, esconde o desejo de entregar de bandeja este mercado para multinacionais como a Amazon, que, devido à capacidade elevada de investimento, impõe uma disputa completamente desleal dentro deste nicho.
Quem perde com isso é a classe trabalhadora. Se observamos a realidade do nosso país, veremos que o livro não é um dos produtos da “cesta básica” devido ao fato de termos o segundo pior salário mínimo da América Latina. Como priorizar a compra de livros quando o básico da comida nas regiões metropolitanas custa até 60% da renda das famílias trabalhadoras?
Precisamos encontrar meios de gritar, mais uma vez, que não queremos só comida, mas também diversão e arte para criar perspectivas de futuro para o nosso país
É por isso que na última década vimos o crescimento de diferentes movimentos nas classes populares que atuam sob a bandeira da democratização do acesso ao livro e à leitura. Os exemplos são vários. De acordo com a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, nove estados da federação já possuem redes locais que conectam mais de 100 bibliotecas, majoritariamente localizadas nas periferias, que possibilitam o acesso solidário à leitura e democratizam o conhecimento. Esse processo se conecta à disseminação de saraus nas comunidades, a iniciativas como as Feiras de Literatura Periférica, a incontáveis projetos de educadores populares e mediadores de leitura, bem como às rodas de slam, que já resultaram em inúmeras publicações editoriais.
Essas diferentes ações nos mostram que há um forte embate político para aproximar o nosso povo dos livros e da cultura em geral, pois o fato é que o cenário é e sempre foi de afastamento do hábito da leitura. Infelizmente, de acordo com a Retratos da Leitura, perdemos mais de 4,6 milhões de leitores: hoje, 48% da população brasileira não lê. No entanto, o caminho para a transformação dessa realidade passa pelo combate à desigualdade social e pela garantia de direitos a partir de políticas públicas.
Desde sua elaboração, em 1988, a Constituição Federal prevê isenção de tributos aos livros, o que já estava presente desde a Carta Magna de 1946. Esta garantia é baseada na ideia do direito à cultura como parte da formação integral humana, não à toa foi proposta há mais de sete décadas pelo então deputado federal Jorge Amado, ícone da literatura brasileira.
As práticas derivadas deste pressuposto constitucional deveriam ser o fomento do acesso ao livro de forma gratuita, através de bibliotecas institucionais, onde se incluem as escolares, acervos comunitários e iniciativas diversas que dialoguem com as desigualdades territoriais e, principalmente, com a realidade do mundo digital. Trata-se, portanto, de uma política transversal entre educação, cultura e assistência social, o que inclui, por óbvio, a garantia de recursos orçamentários.
Não há povo que viva sem literatura em suas diferentes expressões. Em meio à luta pela interrupção do genocídio em curso, coordenado pelo presidente Jair Bolsonaro e sua equipe ministerial, precisamos encontrar meios de gritar, mais uma vez, que não queremos só comida, mas também diversão e arte para criar perspectivas de futuro para o nosso país.
Matheus Gomes
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
Destaques
Navegue por temas