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O povo brasileiro de fato é um povo farto, apreciador da boa mesa. No dia 7 de abril, o chefe do Executivo convidou para um jantar a nata do empresariado brasileiro. Os interesses dos convidados iam desde incentivos fiscais à aceleração do processo de vacinação da população. De acordo com a imprensa, o clima foi de cordialidade, alinhamento e confraternização, apesar daquela ter sido uma semana na qual o país atingiu a triste marca de 4 mil mortes diárias em decorrência da covid-19. Ainda segundo a imprensa, outro fator me chamou atenção: no jantar, só havia homens, todos brancos. Se a “cara” de um projeto deve refletir a identidade de quem lhe construiu, teria mesmo a fome, em alguma medida, a cara de uma mulher negra?
Voltando aos jantares de banquetes, também foi tema nas redes sociais da semana passada a culpabilização de uma trabalhadora doméstica pelo fato da família empregadora ter contraído o vírus da covid. A trabalhadora, cujo nome não foi revelado, foi mencionada como cozinheira. Em fotografia que também circula nas redes, vê-se a família famosa celebrando a Páscoa diante de uma mesa farta, enquanto as “cozinheiras” fitam a câmera numa cena na qual nenhuma, absolutamente nenhuma pessoa, usa máscara. Uniformizadas, a roupa, a cor da pele e o posicionamento (atrás de uma mesa com várias travessas) a função das mulheres que estão atrás da mesa ao fundo do cenário é evidente: foram elas que serviram a mesa farta, finamente decorada para ceia de Páscoa de uma família de elite brasileira.
Na outra ponta dessa mesa, ou melhor, dessa realidade, está a vida real. Muito foi dito sobre o que o povão fez com a renda do auxílio emergencial: especula-se que nunca se comeu tanto churrasco no final de semana nas quebradas, nas comunidades, nas favelas. Tal afirmação sempre antecede aquela que defende que o pobre é um preguiçoso que não tem vontade de trabalhar se a barriga está cheia. Esse discurso não é novo – foi assim que o Brasil justificou a necessidade de medidas sociais e policiais que “forçassem” os negros, os pobres, as mulheres negras a trabalharem no pós-abolição. E foi assim que a fome tornou-se política de controle social dessa parcela enorme da população: quando a fome bate, a dignidade humana se esvai e as pessoas são capazes de qualquer ou quase qualquer coisa para receber como prêmio um prato de comida. Esse prato é, aliás, a grande moeda de troca das elites brasileiras.
Em entrevista ao jornalista André Santana , Creuza Maria de Oliveira, secretária geral da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) e presidente do Sindoméstico (Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Estado da Bahia) revelou, com base em depoimentos das trabalhadoras assistidas pelo sindicato, que a comilança na casa do patronato não parou na pandemia: festas, banquetes, almoços e jantares com muita aglomeração foram promovidos contando com o trabalho dessas mulheres, responsáveis pela comida que alimenta a mesa da família tradicional brasileira. Nessa entrevista, Creuza fala sobre o acesso à comida na casa dos “patrões”: “A minha refeição era o que sobrava dos pratos dos filhos da patroa. Ela jogava um caldo quente por cima e me entregava”.
Também entrevistei Creuza em outro momento para escrever sua biografia em um projeto do qual tratarei em outro momento. Ela também me relatou que foi a precariedade da sua família e a pobreza, anunciada pela sua representante maior, a fome, que fez com que sua mãe lhe entregasse aos cuidados de uma família estranha quando ela tinha 10 anos de idade. O salário de Creuza no Brasil que ainda nutre delírios escravistas, era o seguinte: roupas velhas, restos de comida e alguns alimentos entregues à sua mãe, quando ela lhe visitava. Creuza ainda afirma um dado alarmante: a fome e a pobreza são as motivações principais que levam as meninas negras brasileiras, das zonas rurais sobretudo, a ainda na infância buscar na cozinha alheia a garantia do alimento diário, ainda que seja o resto dos patrões.
Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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