Coluna

João Marcelo Borges

Educação: auxílio emergencial ou acelerador estrutural?

16 de fevereiro de 2021

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Ao analisarmos países que superaram crises profundas, percebemos que os motores dessas experiências foram a garantia de emprego e, em particular, a transformação das políticas educacionais

A despeito do que repetem muitos políticos, executivos e gurus de autoajuda, a palavra em chinês para “crise” (wēijī) não resulta da fusão de “perigo” e “oportunidade”. Essa ideia ganhou força em 1959, quando foi vocalizada pelo então senador e futuro presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, que buscava inspirar e conclamar jovens à ação durante a Guerra Fria. Segundo os linguistas , wēijī é na verdade a junção de “perigo” (wēi) com “momento crucial, iminente” (jī). Crise para os chineses, portanto, constitui uma ameaça real, que impõe perigo existencial, em um momento demarcado. As crises podem ser, contudo, gatilhos de transformações profundas. É a experiência empírica dos indivíduos, comunidades e países que emprestou verossimilhança à falácia sobre o termo crise em chinês. Dado que hoje quase todo o planeta vivencia uma grande crise, pode ser útil analisar exemplos de nações que superaram perigos existenciais e transformaram profundamente sua realidade política, social e econômica.

Por exemplo, enquanto Londres ainda se recuperava dos bombardeios da Luftwaffe ao longo de 1940 e 1941, o governo de coalizão britânico, que reunia Trabalhistas e Conservadores, instituiu uma comissão interdepartamental para avaliar a seguridade social e os serviços sociais ligados ao governo do Reino Unido. Dela resultou o Relatório Beveridge, que assentou as bases da construção do estado de bem-estar social britânico do pós-guerra e teve enorme impacto além do canal da Mancha. Conquanto muitos reconheçam a importância desse relatório para o pós-guerra, a maioria se esquece de que durante a 2ª Guerra Mundial houve também inúmeras ações emergenciais do governo britânico em resposta a demandas existenciais de sua população, como provisão de alimentos, mobilização para o esforço de guerra e a construção de novos abrigos antibombas. Em suma, os britânicos conseguiram conciliar respostas emergenciais a um “momento crucial de perigo” ao planejamento e à concepção de uma resposta estrutural aos problemas “revelados” pela crise.

O caso do Reino Unido não é único. O New Deal, o conjunto de ações implementados por Franklin Roosevelt depois do crash da Bolsa de Nova York em 1929, também representou uma resposta que aglutinou ações emergenciais (investimentos em obras públicas para gerar empregos) e estruturais (criação do salário-mínimo e do seguro-desemprego), antes que, diga-se, Keynes teorizasse a resposta pela demanda em seu clássico “Teoria geral do emprego, do juro e da moeda”, publicado em 1936.

Outro exemplo é a Coreia do Sul que, mesmo sob uma junta militar, desenhou e implementou ao longo de décadas um plano de desenvolvimento econômico que tinha como um de seus pilares a universalização gradativa do acesso à educação. Movimentos semelhantes ocorreram na Espanha depois do Pacto de Moncloa, que deflagrou um processo de modernização econômica e proteção social também pautado na educação (e nos direitos trabalhistas), beneficiando-se dos vultosos aportes de uma União Europeia então ainda decidida a reduzir o abismo socioeconômico entre seus membros.

Há outras experiências exitosas de países que souberam aproveitar crises para promover profundas transformações econômicas e sociais, como a Alemanha Ocidental e o Japão, mas é ainda maior o número de nações que as atravessaram sem resolver problemas anteriores e ainda tendo que enfrentar outros desafios, decorrentes da própria crise, como a África do Sul depois do fim do apartheid, a Federação Russa pós-União Soviética e o Brasil, que malogrou em democratizar sua economia e sociedade após a abolição da escravidão e o advento da República.

É preciso reconhecer que mesmo os casos bem-sucedidos tiveram falhas e não lograram superar todas as desigualdades ou injustiças de suas tessituras socioeconômicas, e vários deles, ademais, se beneficiaram de recursos externos para promover suas reformas. Souberam, contudo, compatibilizar necessidades emergenciais, para sobreviver ao momento crucial , com transformações mais estruturais do Estado, da economia e da sociedade. Foram esforços de engenharia social, mas ancorados na experiência histórica de cada nação, e caracterizados, de um lado, por inventividade e forte planejamento (mais ou menos centralizado e democrático) e, de outro, pelo aproveitamento e incentivo aos melhores traços culturais de suas sociedades. Nos países em que tentativas similares não incluíram uma dessas características, os esforços soçobraram.

Decidir qual educação teremos é decidir que país queremos ser. Conseguiremos reunir as condições para transformar o país? Ou veremos mais uma vez o ‘bonde da história’ passar?

E o que tudo isso tem a ver com o Brasil e o momento atual? Ora, estamos mergulhados em uma crise sem precedentes nos últimos 100 anos, não apenas em função da pandemia e seus efeitos, mas também por obra de processos mais profundos e anteriores, como a desconfiança generalizada nos poderes públicos e nas instituições sociais, como a Igreja, a mídia e os sindicatos. Temos a necessidade de encontrar soluções para questões imediatas, como algum tipo de transferência monetária que ofereça condições mínimas de sobrevivência a grande parcela populacional. Temos, igualmente, a oportunidade de engendrar um abrangente conjunto de reformas que iniciem (ou acelerem) transformações significativas no Estado, na sociedade e na economia, tríade hoje em acelerado processo de esfacelamento, por desconfiança e ineficiência, radicalização e intolerância, e crescimento medíocre sem superação das desigualdades. Tudo isso em meio a mudanças aceleradas nas relações pessoais e comunitárias, no mundo do trabalho e das comunicações, na seara econômica e mesmo na formatação geopolítica do mundo.

É nesse ambiente que o país discute a renovação do auxílio emergencial, construído pelo Congresso Nacional ao longo de março e sancionado pelo presidente da República em 1º de abril de 2020. Trata-se de resposta conjuntural, em momento de perigo iminente (de fome, de doença, de restrições à geração de renda), mas que trouxe importantes benefícios também para o quadro macroeconômico do país, conforme apontaram recentemente Marina Sanches, Matias Cardomingo e Laura Carvalho.

Por que não aproveitamos essa profunda crise e iniciamos um processo de transformação que enfrente os nossos desafios mais estruturais que, além dos “cinco gigantes” apontados por Lord Beveridge em seu relatório — fome, doença, miséria, ignorância e ociosidade —, incluem também as desigualdades, o racismo sistêmico e a violência? Os motores de todas as experiências que citei acima foram o emprego e, particularmente, a educação, tanto em sua vertente como direito quanto pelos efeitos dinâmicos que ela produz (populações mais educadas produzem mais soluções inovadoras para problemas antigos e novos). Da universalização gradativa do acesso à educação técnica e superior na Coreia do Sul, tendo em vista os objetivos econômicos do país, às responsabilidades crescentes assumidas pelo governo americano no New Deal, que democratizou o acesso de grupos minoritários (negros e mulheres) à educação, as políticas educacionais foram o acelerador estrutural das transformações por que passaram esses países.

Nossa agenda de políticas educacionais, consubstanciada em documentos como o Educação Já! , está construída, possui relativo consenso e parte dela está em implementação (e tem gerado melhorias tímidas, mas contínuas, na qualidade da educação nacional nos últimos 20 anos). Contudo, suas componentes com maior potencial transformador – formação docente, implantação da Base Nacional Comum Curricular e o Novo Ensino Médio — ainda engatinham e não encontram no MEC (Ministério da Educação) um agente com capacidade institucional, recursos financeiros e decisão política para coordenar e orientar a educação nacional, assegurando apoio diferenciado aos entes federados em situação mais frágil. O PNE (Plano Nacional de Educação), por sua vez, é uma lei que já nasceu defasada e com sérios problemas de consistência interna entre metas e estratégias, para não falar que suas metas são desassociadas do contexto do país.

Por outro lado, esta agenda é um esforço que, em grande medida, se trata de recuperação do tempo perdido, posto que o Brasil menosprezou a educação pública até a promulgação da Constituição em 1988. Precisamos complementá-lo com outros desafios, como a estruturação adequada de todas as unidades escolares, já ressignificadas: serão sempre prédios? Com qual arquitetura? Com quais recursos pedagógicos e materiais didáticos? Igualmente, como alinharemos nossos exames e avaliações nacionais às demandas de uma cidadania e um mundo do trabalho em transformação? Que práticas pedagógicas e competências didáticas conseguirão ao mesmo tempo oferecer ensino personalizado sem perder a homogeneidade necessária às turmas e anos escolares? Estamos aplicando corretamente os vultosos recursos canalizados para a educação?

Não se trata, é óbvio, de “resolver”, em pouco tempo, “o que foi construído ou reforçado por séculos de exclusão e descaso ”, como bem apontou em artigo recente uma de nossas maiores especialistas em educação, Anna Helena Altenfelder. Ao fim e ao cabo, decidir qual educação teremos é decidir que país queremos ser. Por séculos, o Brasil optou por ser um país desigual, injusto, com oportunidades concentradas e que incentivou e naturalizou violências contra a maioria de sua população. Conseguiremos reunir as condições – intelectuais, políticas, institucionais, financeiras –, mas também o tempo, a resiliência e o firme propósito para transformar o país? Ou veremos mais uma vez o “bonde da história” passar? Estou longe de ser fiscalmente irresponsável, mas, antes que alguém levante a placa de que “não há recursos”, devo dizer que esta foi a reação do Lorde do Exchequer (equivalente ao Ministro da Fazenda) à publicação do Relatório Beveridge que, segundo ele, impunha “compromissos fiscais impraticáveis” ao Reino Unido.

Já sabemos que uma agenda tão transformadora não será encampada pelo atual governo federal. Deixo então um convite aos presidentes das duas Casas do Congresso Nacional, para que convoquem parlamentares, associações setoriais (empresariais, sindicatos etc.), especialistas e profissionais efetivamente envolvidos com a educação, pública e particular, para que juntos construam um plano de transformação educacional para o Brasil pós-pandemia, a ser apresentado ao país no bicentenário de sua independência. Sem esse plano, qualquer reforma aprovada pelo Congresso Nacional terá resultados apenas pontuais e de curta duração.

João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.

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