Coluna

Luciana Brito

É tudo (quase) carnaval, mas não é pra todo mundo

22 de fevereiro de 2022

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A solução do rico mercado carnavalesco baiano ao cancelamento da folia: organizar festas privadas, versões expandidas dos camarotes

Foi ainda no ano passado, em outubro de 2021, que o governo do estado da Bahia e a prefeitura de Salvador anunciaram o cancelamento do carnaval . A princípio, a medida gerou controvérsias e até mesmo a revolta dos ricos empresários do ramo carnavalesco e dos artistas que lotam camarotes e arrastam multidões nos trios elétricos. Contudo, com o aumento dos casos de influenza no mês de dezembro, concomitante à chegada da variante ômicron, tornou-se consenso geral a impossibilidade da ocorrência do carnaval, sob o risco iminente de uma tragédia sanitária.

Logo surgiram as soluções apresentadas pelo rico mercado carnavalesco baiano: as festas privadas, versões expandidas dos camarotes, inspiradas na lógica dos bailes privados que eram reduto das elites baianas antes de disputarem com o povão as ruas, o que começou a acontecer com força na década de 1970. Criou-se para isso um nome, o “carnaval indoor”, nome bem apropriado para carregar a marca de distinção e elitismo da festa: tem carnaval quem pode pagar por ele.

Cerca de 30 festas privadas acontecerão em Salvador entre esta semana e a próxima. Os ingressos, ou os “passaportes da folia” variam de R$ 30 a R$ 350 por dia, podendo chegar a R$ 3.500 um pacote para todos os dias de festa. O decreto estadual que antes estabelecia um público máximo de 5.000 pessoas, agora estabelece um máximo de 1.500, com comprovação de vacinação.

Os impactos financeiros da suspensão do carnaval para o estado da Bahia são devastadores: em 2021, deixou-se de arrecadar R$ 1,7 bilhão. Porém, esta colunista lamenta o impacto desse vazio nas avenidas, do silêncio dos tambores e da falta da multidão nas ruas por dois aspectos: aquele que diz respeito à economia das pessoas negras e pobres de Salvador e do ponto de vista do que significa essa ausência da festa para a cultura popular, manifestação maior das expressões artísticas e da criatividade do povo brasileiro.

O decreto que suspende o carnaval, devemos lembrar, se estende às festas dos bairros populares, aos bloquinhos que circulavam nas comunidades e que movimentavam uma economia comunitária durante os dias de folia: a venda de comida significava dinheiro extra para diversas mulheres negras cuja renda era certa durante o período do carnaval. Falo das vendedoras de feijoada, do vendedor de cachorro-quente que, com suas iguarias diversas, aliviavam a fome das foliãs e foliões ao longo do circuito, além do vendedor de cerveja, a costureira que produzia fantasias e que reformava abadás, as moças que trançam cabelos, as pessoas que produzem as bijuterias que embelezavam ainda mais o figurino dos blocos afro, enfim, essa economia deixou de ser movimentada entre as pessoas que atuam no mercado informal nos últimos dois anos.

Luciana Britoé historiadora, doutora em história pela USP e especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e autora dos livros “O avesso da raça: escravidão, racismo e abolicionismo entre os Estados Unidos e o Brasil” (Barzar do Tempo, 2023) e “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista” (Edufba, 2016), ganhador do prêmio Thomas Skidmore em 2018. É também autora de vários artigos. Luciana mora em Salvador, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve mensalmente às terças-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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