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Atila Roque

A violência que corrói o pacto social brasileiro

12 de julho de 2022

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Quem estuda o processo de formação da sociedade do país percebe claramente o lugar que a violência sempre cumpriu como marcador social e mecanismo de controle da ordem

No decorrer das últimas semanas fomos confrontados, de maneira quase incessante, por uma sucessão de episódios de violência que deixou sem ar até mesmo quem se acostumou a acompanhar a rotina de chacinas, assassinatos, feminicídios e outros marcadores cotidianos da sociabilidade violenta brasileira. As chacinas cometidas pela polícia no Rio de Janeiro, o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, o sufocamento por gás na mala de um carro da Polícia Rodiviária Federal de Genivaldo de Jesus Santos, a tentativa de imposição forçada de uma gravidez decorrente de estrupo a uma criança de apenas 11 anos de idade, o estupro de uma mulher em trabalho de parto dentro do hospital pelo médico anestesista que a atendia, são alguns exemplos recentes de que estamos diantes de um momento, talvez, em que a violência nossa de cada dia transbordou o nível ao qual estivemos (mal) habituados a tolerar.

O assassinato a tiros de um militante do PT, em plena festa para celebrar seu aniversário, por um apoiador de extrema direita do atual presidente da República, foi mais um indicador do grau de tensão em que nos encontramos. As circunstâncias exatas desse crime brutal ainda seguem em apuração, mas não resta dúvida que o tom radicalizado e bélico que sempre marcou os discursos e falas do presidente (e dos aliados mais próximos, inclusive membros do governo) induz ao enfrentamento e à radicalização. O incentivo e as medidas que facilitaram o acesso às armas de fogo nos últimos anos semeiam um território político altamente explosivo, com um número crescente de pessoas armadas convencidas de possuírem o direito de fazerem uso delas, em suposta defesa da liberdade.

Para quem estuda o processo de formação da sociedade brasileira, não nos escapa o lugar que a violência sempre cumpriu como marcador social e mecanismo de controle da ordem. Distribuída, tolerada e aplicada com intensidade calculada sobre populações negras (pré e pós-abolição), indígenas, periféricas e faveladas, a violência nunca foi, no Brasil, resultado de desordem aleatória, desvio funcional ou explosão momentânea de paixões. Foi sempre projeto, teve sempre alvos preferenciais, faz parte do aparato de dominação e regulação política.

Foi sempre condição necessária à construção da nacionalidade brasileira, erigida sobre o genocídio, a expropriação territorial das populações indígenas e a subalternização de africanos escravizados ao longo de quatro séculos de tráfico Atlântico. Uma nacionalidade que se esforçou por estabelecer um ideal europeizado de civilização, marcado por uma visão supremacista de branquitude, cuidadosamente enraizada em um racismo estrutural que perpassa todas as nossas instituições.

O padrão de desigualdades persistente no Brasil somente se sustentou ao longo da história, sem rupturas bruscas, nem situações de convulsões sociais generalizadas, por conta de uma sofisticada engenharia social que foi capaz de manter a ordem e conter a revolta através de um exercício cotidiano de subalternização que tem no racismo e na administração da violência os seus principais fatores. A violência institucional se articulou com a violência do racismo, do patriarcado, do machismo, da LBGTI+fobia e de outras formas de subalternização profundamente arraigadas na sociedade brasileira.

A política parece ter se tornado um terreno árido para a formulação de propostas alternativas. O ódio disseminado na esfera pública parece ter colocado todo o esforço de pensamento criativo na defensiva

A pergunta é: qual será o limite da coesão social para uma situação em que o Estado parece ter aberto mão, intencionalmente, do monopólio da violência e delegou (autorizou) o seu uso a grupos de interesses privados, em grande medida dedicados à exploração de recursos naturais e outras atividades ilegais?

A proliferação de discursos de ódio e o estímulo à intolerância disseminado pelas redes sociais, com a participação ativa e o respaldo das mais altas autoridades da república, que vem marcando o ambiente político e cultural do Brasil nos últimos anos, abriu uma caixa de horrores que fica cada dia mais difícil de fechar. A degradação das falas e dos debates, com a violência verbal e os ataques online alcançando níveis inimagináveis de agressividade, atingindo em particular as mulheres, vem acompanhada crescentemente de atos de violências físicas e ameaças à vida que se espalham por todos os lados. Com raríssimas exceções, o que temos visto é uma tolerância cada vez mais leniente com o incentivo à violência por parte das instituições e atores sociais que teriam capacidade de reagir e colocar um limite a esses impulsos.

Não podemos subestimar o risco de entrarmos em um espiral de descontrole que, no final das contas, não vai deixar ninguém ileso. O crescimento da violência política no Brasil é uma realidade que aparece nos levantamentos feitos ao longo dos últimos anos. Conforme dados divulgados nos últimos dias pelo Observatório da Violência Política e Eleitoral , formado por pesquisadores do Giel (Grupo de Investigação Eleitoral) da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Comparando os primeiros seis meses de 2022, com o mesmo período em 2020, ano de eleições municipais, passamos de 174 para 224 casos registrados, um aumento de 23%.

Temos visto as consequências do abandono intencional – por parte do Estado e das autoridades responsáveis – do papel regulador da ordem e da legalidade que lhes é atribuído pela Constituição. Esse é o quadro de largas parcelas da região amazônica, cenário da execução de Dom Phillips e Bruno Pereira, onde o território foi deixado livre para a ação de grupos criminosos nacionais e internacionais que espalham o terror entre populações indígenas e ribeirinhas que ousam se opor aos seus negócios. O mesmo vem ocorrendo em áreas urbanas das grandes cidades, controladas por milícias criminosas, muitas vezes em parceria com setores do Estado e das forças de segurança, tornadas sócias preferenciais da ilegalidade.

A política parece ter se tornado um terreno árido para a formulação de propostas alternativas e hostil ao debate de ideias. O ódio disseminado na esfera pública parece ter colocado todo o esforço de pensamento criativo na defensiva. O resultado é que a política institucional se distancia cada vez mais das pessoas comuns. A sociedade deixa de se enxergar naquelas instâncias que deveriam representar o bem comum, na sua diversidade. Isso acaba por produzir um deficit profundo de legitimidade, abrindo espaço para as forças capazes de mobilizar as paixões e os desejos, através da manipulação do medo e da violência. Escapar do medo e da violência sempre foi um dos principais objetivos do pacto social que fundamenta a criação dos Estados modernos e, em última análise, da democracia. Se perdemos isso, nos aproximamos do estado de natureza descrito pelo filósofo Thomas Hobbes no clássico “O Leviatã”, no qual prevalece a guerra de todos contra todos, e todos perdem.

Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).

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