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Essa coluna tem um toque mais pessoal, dedicada à lembrança de um amigo querido que também é um personagem inesquecível da história recente do Brasil: Herbert de Souza, o Betinho, falecido no dia 9 de agosto de 1997. Um texto afetivo de resgate e costura de um percurso marcante para o Brasil, carregado de sonhos, frustrações e muita esperança.
Vinte cinco anos depois da sua morte, os ideais de Betinho seguem mais vivos do que nunca. Diferente do pássaro morto no passado pela pedra atirada por Exu no presente, como narra a tradição Iorubá, Betinho renasce todos os dias a partir da força das suas ideias. Elas oferecem o rumo para o enfrentamento dos desafios do tempo presente, a reinvenção do futuro a partir da chave da esperança e do amor. Em tempos de tantas frustrações e retrocessos, Betinho encarnava a visão de um Brasil mais igualitário e democrático.
Deixou como legado, entre muitas outras agendas, a erradicação da fome como objetivo central e necessário da luta pela cidadania plena em uma sociedade que almeja a democracia. O movimento por ele criado em meados da década de 1990, como desdobramento da mobilização pela ética na política, a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida , segue vivo e atuante nesse momento em que voltamos, tragicamente, ao mapa da fome.
O Brasil não costuma guardar a memória dos seus verdadeiros heróis. Faz muito, sempre, pela preservação dos falsos mitos construídos pela história oficial e esquece com facilidade os verdadeiros tecedores de nossas riquezas culturais, políticas e econômicas. Reivindicar memórias de lutas sociais, em particular, é um ato de resistência e resgate de futuros possíveis. No caso do Betinho, a sua memória permanece ativa na cabeça de boa parte dos brasileiros pelo poder inspirador e único da sua trajetória.
A força de Betinho estava na sua profunda adesão à vida, como valor irredutível e inegociável. Eu nunca conheci alguém que respeitasse a vida humana com a paixão e a verdade que Betinho trazia para cada luta ou causa na qual se engajava. Era como se ele tirasse da sua própria experiência profunda com a precariedade e o estado de risco permanente, a força necessária para abraçar todas as vidas. A debilidade física e as ameaças da luta contra a ditadura incutiram um senso de urgência em tudo que fazia.
Desde muito cedo experimentou no próprio corpo a precariedade e a presença permanente da morte. Não bastassem as brincadeiras quando criança entre os caixões da loja funerária onde o pai trabalhava, em Belo Horizonte – algo que certamente influenciou profundamente o humor sarcástico e ferino que caracterizava os irmãos Souza, especialmente Betinho e Henfil -, trazia com ele a experiência quase sempre dolorosa da hemofilia. Os anos de adolescência em que passou isolado em um quarto por conta de uma tuberculose, finalmente curada pela descoberta de um remédio, cuja descoberta se deu por ele mesmo através da leitura de um artigo na revista Manchete, trouxeram o hábito de se perder na imaginação. Tudo isso fez com que se visse como alguém que driblava constantemente o azar e projetava um futuro de promessas. Como ele mesmo diz em um dos seus textos autobiográficos, nasceu para a desgraça, mas deu sorte.
Para que tenhamos algum futuro que valha à pena ser vivido, a pedra lançada por Betinho no passado precisa acertar em algumas cabeças no presente
Sobrevivente da ditadura e do exílio, voltou ao Brasil após a anistia, em 1979, para se dedicar a colocar em prática o sonho de um Brasil democrático e justo. Escolheu o território da sociedade civil como o seu lugar prioritário de ação. A epidemia da AIDS dos anos 1980 trouxe de volta a iminência da morte para o seu cotidiano. Contaminado, juntamente com os dois irmãos, recusou a sentença trazida pelo estigma e o preconceito que atingiu os portadores do vírus e abraçou a luta pelo direito ao tratamento, acesso aos medicamentos e o fim do comércio imoral de sangue. Nem a dolorosa perda dos dois irmãos, com um intervalo de apenas dois meses um do outro, em 1988, em decorrência das complicações trazidas pela AIDS, fez com que desacreditasse da vida. Criou a ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS) . Em 1998, a Câmara dos Deputados finalmente aprovou a legislação que proibiu o comércio de sangue e derivados e criou o Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Derivados, apelidada de “Lei Betinho” .
Convivi intensamente com Betinho desde o início dos anos 1980, quando passamos, pela primeira vez, algumas horas conversando no balcão de um bar, após uma das palestras que ele, com frequência, fazia a convite de estudantes. Eu era muito jovem, ainda cursava a graduação em história, mas naquele encontro nasceu um vínculo profundo que se intensificou durante os anos que trabalhamos juntos no Ibase , a organização que teve Betinho como um dos seus fundadores, em 1981, onde ele exerceu a direção até o fim da vida.
Betinho tinha uma crença profunda na democracia e no papel central da sociedade civil. O seu engajamento com os temas centrais da democracia era visceral e não simplesmente profissional. Uma convicção inescapável e avassaladora. Os amigos, família e companheiros de trabalho eram tragados por ela. Ele acreditava que sem o engajamento cotidiano e radical da cidadania ativa não seríamos capazes de sustentar nem avançar na construção da utopia democrática. A participação cidadã e a solidariedade eram valores centrais de uma ética política democrática radical.
Betinho também amava a música e a arte. Fazia questão de se manter cercado de músicos e artistas, constantemente mobilizados para saraus na sua casa ou na casa de amigos. E justamente neste ano, celebramos a longevidade e obras de artistas que nos trazem orgulho e que provocam admiração pelo mundo afora. Completam 80 anos de vida gigantes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Paulinho da Viola. Seguem não apenas ativos, mas capazes de provocar a nossa imaginação com a arte que produzem, de maneira incessante, ao longo de mais de cinco décadas.
Também é um período de grandes definições, onde a sociedade brasileira, as suas instituições e atores coletivos estarão sendo chamados a escolher o caminho que desejam percorrer nas próximas décadas. Sem exagero, estamos diante de um momento histórico que pode definir o futuro das próximas gerações e o lugar do Brasil no mundo. Oxalá, um lugar que honre a trajetória e a contribuição de heróis que nos deixaram precocemente, como Betinho, e dos que seguem nos ofertando a sua incansável capacidade de manter os sonhos vivos. O Brasil tem urgência de justiça e igualdade, tem fome de comida e arte, sede de democracia. Para que tenhamos algum futuro que valha à pena ser vivido, a pedra lançada por Betinho no passado precisa acertar em algumas cabeças no presente.
Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).
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