Coluna

Vozes da Amazônia

Celebrar a Amazônia para conhecer novas formas de sonhar

04 de setembro de 2022

Temas

Compartilhe

A floresta amazônica é plural, e representa ao mesmo tempo o passado vivido e o futuro sonhado

Diz que não existe uma Amazônia senão várias, assim, no plural. Nesse “todo”, que parece imitar seu tamanho, cores, sons, mistérios, sabores, vidas e gentes, habitam também histórias, e, a todo tempo, transitam sonhos.

Assuntando um relato, o xamã Davi Kopenawa conta à antropóloga Hannah Limujlia que, quando os Yanomami querem conhecer alguma coisa de verdade, se esforçam em sonhá-la. Em “O desejo dos outros – Uma etnografia dos sonhos Yanomani”, de autoria da antropóloga, cabem nos olhos a imensidão de várias versões de ser: são realidades diversas as que permeiam a floresta. Nenhuma história, porém, tem consistência se não existe memória, e é por isso que as Amazônias são – ao mesmo tempo – o passado vivido e o futuro sonhado, no intercurso daquilo que chamamos de “nós”.

Sendo incontestável o fato da nossa inescapável interdependência com o bioma, comemorar o 5 de setembro, o Dia da Amazônia, retoma o sentido de nos manter em sincronia com nossa própria existência. E também o sentido de reinventar como a imaginamos, como com ela nos relacionamos, como ela tem sido nesse espaço-tempo de tantas transformações profundas. Aliás, vale abraçar este dia como um possível caminho de reinvenção civilizatória, isto é, uma oportunidade de pactuarmos coletivamente que não existe mais um presente possível sem que a Amazônia, sua proteção e integridade sejam prioridades em nosso dia a dia.

Nas versões de Amazônia contadas e recontadas Brasil afora, cada vez mais nítida se torna a percepção de que inteligência e saberes, potencial de inovação e formas de cuidado reverberam como a Amazônia necessária e possível. Experiências como a Rede Rhisa (Rede de Recursos Humanos e Inteligência para Sustentabilidade da Amazônia), no campo do fomento à ciência da região, e as redes de juventudes como o Engajamundo, JVAP (Jovens da Amazônia pelo Futuro do Planeta) e a Cojovem (Cooperação da Juventude Amazônida para o Desenvolvimento Sustentável) são evidências dessa percepção.

Não existe mais um presente possível sem que a Amazônia, sua proteção e integridade sejam prioridades

Isso parece se conectar, cada vez mais, ao sentimento e visão da sociedade brasileira: em 2022, nota-se que a maior parte do eleitorado nacional concorda que o desenvolvimento econômico do país depende da proteção do bioma, afastando a versão já superada de que desmatamento, por exemplo, é o caminho para tal objetivo.

Se na Amazônia estão as águas que correm sobre a terra e o céu, nos rios e nas chuvas, para garantir colheita, nos alimentar, acessar energia elétrica digna, diminuir calor, transportar bichos e gente; se nela coexistem o sagrado e os meios de vida de indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e aglomerados urbanos de relações sociais e culturas únicas; se é dela que brotam individualidades e formas coletivas de criar planos intergerações; se nela prestamos atenção para assegurar o equilíbrio climático, para evitar extremos e secas dentro e fora de suas bordas; se, por meio dela, reivindicamos nosso lugar no mundo, como não celebrá-la?

A Amazônia que pulsa em plural, apesar de marcada e lembrada por tragédias e violências, ainda se põe de pé frente às repetidas investidas de projetos político-econômicos predatórios, ilegais e retrógrados que se impõem sobreseus ecossistemas, saberes, seres e corpos.

Conforme aponta o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a Amazônia está, hoje, acometida por sobreposições de violações e criminalidades de diferentes tipos, do desmatamento e tráfico ilegal de madeiras ao garimpo ilegal e rotas de narcotráfico. A violência letal da região é 38% superior àquela registrada nas demais regiões do país. As mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips reverberaram esse cenário de caos e insegurança social e demonstraram o custo de sonhar com a floresta de pé. Nós, amazônidas, sabemos respeitar bem o silêncio que ecoa na mata. Mas nunca o silenciamento que se intenta sobre nossa memória e sonhos.

Celebrar a Amazônia, em um dia especial, é sobre história. Nossa história de Brasil. Nossa história de reinvenção do imaginário de como a Amazônia impacta em nossa qualidade de vida e nas histórias que queremos criar a partir de quem somos. É inspirar novos olhares sobre como a Amazônia é fundamental para o mundo e convidar gerações a enxergar esses caminhos. Ouvindonossas Vozes. E, por isso, merece a maior mobilização já vista. Este é um grande convite ao Brasil: de conhecer a verdade e outras formas de sonhar.

Leonildes Nazar é cientista política, internacionalista e educadora popular, doutora pelo IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Maranhense, da ilha de São Luís, dedica-se, especialmente, à pesquisa científica e articulação política junto a movimentos e organizações sociais nas agendas de mudanças climáticas, justiça socioambiental e direitos humanos. É pesquisadora do Labmundo (Laboratório de Análise Política Mundial) e do OIMC (Observatório Interdisciplinar das Mudanças Climáticas). No Instituto Clima e Sociedade, coordena a Iniciativa Amazônia.

Ana Rosa Calado Cyrus é pedagoga, pesquisadora e ativista de Belém do Pará. É diretora-executiva do Engajamundo e mestre em geografia pela UEPA (Universidade do Estado do Pará). Por meio do viés ligado à educação popular, desenvolve ações relacionadas à ativismos urbanos, movimentos socioambientais e juventudes na Amazônia.

Vozes da Amazôniaé uma coalizão formada por organizações, movimentos e coletivos socioambientais e culturais de dentro e fora da Amazônia brasileira. Surgida em julho de 2021, reúne visões, narrativas e territorialidades diversas, mas unidas com um único propósito: mobilizar e engajar toda a sociedade pela proteção da floresta, de seus povos e do equilíbrio climático do planeta.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas