Coluna
Alicia Kowaltowski
Hesitação vacinal: resultado do perigoso modismo natureba
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A atriz Gwyneth Paltrow famosamente afirmou que não acredita que nada que é natural pode ser ruim para você. A crença dela não poderia estar mais errada, pois há muito na natureza que faz muito mal a um ser humano: picadas de cobras, furacões, doenças infectocontagiosas, lava expelida por explosões vulcânicas, urânio radioativo, etc. A batracotoxina, presente na pele de sapos sul-americanos, é tão tóxica que apenas 300 microgramas (0,0003 gramas, ou o equivalente a 1/10 do peso de um mosquito) são capazes de matar um homem adulto. Isso faz esta toxina ser cerca de 1.000 vezes mais potente que o cianeto, que, por sinal, também é um produto natural, produzido por certas plantas para sua defesa.
É fato que não há nada que faça um produto da natureza ser melhor para a saúde humana que uma molécula sintetizada artificialmente. Pelo contrário, seres vivos competem entre si há bilhões de anos na Terra para sobreviver, e assim aperfeiçoaram mecanismos altamente eficazes de eliminar outros seres vivos e garantir a sobrevida de sua espécie – a natureza é cheia de moléculas bastante tóxicas. Mas a falácia da bondade dos produtos naturais é forte, e a indústria que cultua o natureba vai muito além dos absurdos e superfaturados produtos de beleza e “wellness” da atriz Gwyneth Paltrow e outras celebridades. Hoje é quase impossível comprar um produto de higiene como shampoo, condicionador ou sabonete sem que este tenha um aspecto natureba anunciado de forma destacada na embalagem para aumentar a sua vendabilidade.
Seria fácil aceitar o movimento natureba como um modismo inócuo, já que um sabonete com um pouco de lavanda ou condicionador com óleo de argan dificilmente trará malefícios para nossa saúde. Mas o constante bombardeamento com a falácia de que produtos naturais são automaticamente saudáveis é perigoso, já causou doença e morte, e continuará causando. Como exemplos, em 1996, sucos produzidos pela companhia norte-americana Odwalla levaram 70 pessoas a adoecer, incluindo 25 hospitalizações e a morte de uma criança. A empresa queria se utilizar do propagandismo natureba para vender os produtos e, como resultado, os sucos não eram pasteurizados, e os equipamentos de produção e envase não eram adequadamente limpos com produtos antissépticos, permitindo assim o crescimento de bactérias infecciosas. Em 2014, uma criança diabética morreu após seus pais terem sido orientados a trocar a sua insulina por extratos de plantas pelo “herbalista” Timothy Morrow. Assustadoramente, a especialidade do tal “herbalista” (leia-se charlatão natureba) era tratar pacientes com câncer. Isso significa que ele provavelmente causou muito mais mortes, pois estudos envolvendo quase 2 milhões de pacientes com câncer demonstram que a chance de morrer dobra para aqueles que aceitam “práticas complementares” naturebas, como uso de ervas, suplementos de vitaminas e minerais, medicina tradicional chinesa, homeopatia e naturopatia. O modismo natureba mata!
O aspecto mais mortal do modismo natureba talvez seja ter embasado o movimento antivacina, classificado entre as maiores ameaças mundiais à saúde pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Vacinas consistem em apresentar para o corpo estruturas de agentes infecciosos (como vírus e bactérias) que não possuem a capacidade de causar doença, treinando os nossos sistemas de defesa imune a responder a elas, e assim evitando ou diminuindo a gravidade de uma infecção natural verdadeira posterior. São um divisor de águas para a saúde global, prevenindo de 2 a 5 milhões de mortes por ano , mesmo antes da pandemia de covid-19. Apesar disso, cresce continuamente o número de pessoas anti-vax, que são contra o uso de vacinas, preferindo que o corpo adquira imunidade “naturalmente” a patógenos através das doenças em si, sem levar em consideração que doenças causam sequelas e mortes, enquanto vacinas no máximo levam a algum desconforto temporário. Através de redes sociais e apoiados pela falácia universalmente inquestionada que tudo que é natural é bom, pessoas do movimento anti-vax têm cada vez mais influenciado outros, e gerado um substancial contingente de pessoas que são hesitantes a vacinas – não necessariamente recusam se vacinar, mas têm medo infundado de efeitos colaterais, e evitam ou postergam algumas inoculações, diminuindo assim a eficácia dos programas de vacinação.
Os resultados são devastadores. O estado de Nova York recentemente declarou estado de emergência por causa da re-emergência da poliomielite, que já causou paralisia permanente em pelo menos um adulto infectado não vacinado. O risco para brasileiros desenvolverem a mesma terrível doença é altíssimo, pois os índices de vacinação, que eram praticamente de 100% em 2013 , caíram abaixo do índice de 95% necessário para controlar a transmissão a partir de 2016, e atingiram apenas 70% em 2021. Apesar do esforço de se melhorar esses índices nas últimas semanas, e da vacina ser de aplicação oral e tão segura que se pode administrá-la repetidamente sem nenhuma consequência negativa para crianças, várias regiões nacionais ainda seguem sem cobertura vacinal suficiente, alguns com cobertura infantil abaixo de 50%. Essa baixa adesão, num país que já foi exemplo internacional de excelência em programas de imunização, certamente se deve à desestruturação destes programas por um governo cujo líder chega ao absurdo de sugerir que vacinas podem transformar pessoas em jacarés.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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