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Agenda 227

A retomada dos direitos fundamentais para a infância

17 de janeiro de 2023

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Será preciso coordenação entre diferentes ministérios para o novo governo reverter retrocessos e formular políticas estruturantes para crianças e adolescentes

O ano de 2023 se iniciou com uma posse presidencial histórica, na qual o reconhecimento da diversidade do povo brasileiro foi apresentado como uma das marcas do novo mandato. Dias depois, no entanto, esse momento de celebração da cidadania e da participação popular acabou manchado por atos criminosos de vandalismo e de afronta ao Estado Democrático de Direito que ocorreram na capital federal, atingindo as sedes dos Três Poderes.

Por mais graves que sejam seus impactos, acreditamos que as manifestações golpistas do dia 8 de janeiro não conseguirão interromper o processo de retomada da ampla agenda de garantia dos direitos humanos no Brasil. Em especial, a centralidade dos direitos de crianças e adolescentes, grupo que abrange nada menos de um quarto da população do país – e que, de forma inédita, subiu a rampa do Palácio do Planalto durante a posse, pelos pés de Francisco Carlos do Nascimento, de 10 anos.

Não se pode minimizar o simbolismo da mensagem transmitida pela presença do menino Francisco, ao lado de outras importantes representações de parcelas menos visibilizadas da população, com relação aos compromissos assumidos pelo novo governo. Está em pauta o resgate de direitos fundamentais, que ao serem negligenciados ao longo dos últimos anos afetaram fortemente a vida de meninas e meninos, negros, povos originários, pessoas com deficiência e tantas outras minorias.

Devemos saudar também as recentes decisões presidenciais, que convergem para a construção de um país mais justo, próspero, inclusivo e sustentável. Na primeira semana de governo, vale sublinhar, começaram a ser respondidos importantes pleitos da sociedade civil, vários deles encaminhados ou apoiados pela Agenda 227, visando a impulsionar a reconstrução da rede de proteção social do Brasil.

O olhar para o cuidado e o desenvolvimento integral das infâncias brasileiras não surgirá espontaneamente em todos os ministérios

Entre outros exemplos, temos a derrubada do decreto que estimulava a segregação do ensino para pessoas com deficiência e das normas que facilitam o acesso da população a armas de fogo. Foi recriado, ainda, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, instrumento essencial no combate à fome, além de ser retomado o Fundo Amazônia e revogada decisão pró-atuação dos garimpos em áreas da floresta. Também foram sinalizados empenhos para fortalecer o relançamento do programa Bolsa Família, com possibilidade de aporte adicional de R$ 150 por cada criança de 0 a 6 anos, além da disposição de recuperar-se as taxas de cobertura vacinal, que um dia já foram exemplares no Brasil, a partir da valorização das campanhas de imunização e do conhecimento científico.

A composição ministerial também prenuncia novos tempos, de fortalecimento de direitos fundamentais. Este é o caso das nomeações de Silvio Almeida para a área de Direitos Humanos e Cidadania; de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima; e de Sônia Guajajara e de Anielle Franco para duas pastas recém-criadas: a dos Povos Indígenas e a da Igualdade Racial, respectivamente. Mas os déficits socioeconômicos que marcam o Brasil também colocam fortes expectativas sobre os desempenhos de Wellington Dias (Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome), Nísia Trindade (Saúde), Camilo Santana (Educação), Simone Tebet (Planejamento e Orçamento), Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) e Fernando Haddad (Fazenda), só para citar algumas das pastas fundamentais para a garantia dos direitos da população de 0 a 18 anos.

Nunca é demais enfatizar que a jornada à nossa frente será longa e árdua. Isso porque cabe à nova administração federal dar conta de dois desafios simultâneos: por um lado, atender às pressões emergenciais geradas pelos dramáticos retrocessos contabilizados em anos recentes; por outro, formular políticas estruturantes que venham a equacionar, de forma definitiva, as múltiplas desigualdades que se confundem com a própria história da sociedade brasileira, conforme ilustram os indicadores relativos à pobreza, ao racismo ou às diversas formas de violência.

Para se ter uma dimensão do desafio, até 2022, 80,35% das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável assumidas pelo Estado brasileiro junto à ONU (Organização das Nações Unidas) estavam em retrocesso, ameaçadas ou estagnadas, segundo o 6º Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. Além disso, a ação deliberada ou a inação do governo anterior trouxe forte impacto para temas sensíveis à população de 0 a 18 anos. Cerca de 40% das crianças e dos adolescentes brasileiras viviam em pobreza monetária no início de 2020; 5,1 milhões crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não tinham acesso à educação no Brasil em novembro de 2020, durante a pandemia, segundo o Unicef; e quase 5 mil km² de floresta haviam sido desmatados na Amazônia nos primeiros seis meses de 2022, o pior índice para o período nos últimos 15 anos, de acordo com o Imazon.

É vasta a lista de medidas e ações que precisam ser tomadas com urgência para que este cenário fique para trás. O Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, que abriga a Secretaria Nacional dos Direito da Criança e do Adolescente, tem um papel central nesta tarefa e um enorme desafio pela frente, mas a interseccionalidade e a intersetorialidade que marcam o campo da infância e da adolescência demandam que essa seja uma tarefa assumida por diversas pastas: Cultura, Fazenda, Educação, Esporte, Gestão e Inovação em Serviços Públicos, Igualdade Racial, Justiça e Segurança Pública, Saúde, Cidade, Comunicações, Mulheres, Desenvolvimento Social, Meio Ambiente e Mudança do Clima, Direitos Humanos e Cidadania, Povos Indígenas, entre outras. Todas precisam ter o mesmo compromisso de dar absoluta prioridade a crianças e adolescentes em suas ações, como determina o artigo 227 da Constituição Federal.

É certo que esse olhar para o cuidado e o desenvolvimento integral das infâncias e das adolescências brasileiras não surgirá espontaneamente em todas as pastas e necessitará de forte coordenação para que as políticas públicas das diferentes áreas estejam integradas. Para tanto, seria necessária a criação de uma estrutura interministerial capaz de dar diretrizes, coordenar esforços, promover um olhar integral e integrar e aprimorar políticas públicas. Além de permitir ao país responder com mais agilidade a novos desafios e oportunidades relativos à proteção e à promoção dos direitos de meninas e meninos, a criação de tal instância significaria um salto inédito no Brasil e quiçá no mundo no compromisso de um Estado nacional com a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU e com o princípio de que investir na infância no presente significa também investir no futuro do país.

Enfim, reconstruir o país e a democracia brasileira requer compromisso com a democratização dos avanços econômicos, sociais, culturais e ambientais conquistados desde 1988, em especial para todas as crianças e adolescentes. Promover direitos é fortalecer a democracia e o melhor remédio para que este cenário desolador não se repita. Nunca mais.

Rodrigo Hübner Mendes é fundador e superintendente do Instituto Rodrigo Mendes, uma das organizações que integra o Grupo de Coordenação e Articulação da Agenda 227. É graduado em Administração de Empresas e mestre em Gestão da Diversidade Humana pela Fundação Getulio Vargas, onde atua como professor. É autor do livro “Educação Inclusiva na prática” e membro do Young Global Leaders (World Economic Forum) e empreendedor social Ashoka.

Veet Vivarta é jornalista, coordenador da área de justiça e primeira infância da ANDI – Comunicação e Direitos e integrante da equipe executiva da Agenda 227.

Agenda 227é um movimento apartidário da sociedade civil brasileira que tem como objetivo colocar crianças e adolescentes no centro da construção de um Brasil mais justo, próspero, inclusivo e sustentável para todos, a partir da concretização da prioridade absoluta garantida à população de 0 a 18 anos pelo artigo 227 da Constituição Federal.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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