Coluna

Luiz Augusto Campos

Tudo o que há entre a ciência e a pseudociência

08 de agosto de 2023

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Uma das simplificações mais problemáticas do livro ‘Que bobagem’ é aquela que define a ciência como uma espécie de atitude ou postura em relação ao mundo

Talvez um dos únicos saldos positivos da trágica pandemia da covid-19 tenha sido a relegitimação política da ciência e de seus praticantes. É verdade que isso veio acompanhado do fortalecimento de grupos negacionistas em algumas partes do globo, mas estes estariam ainda mais fortes caso as vacinas não estivessem em nossos braços e com efeitos estatisticamente atestados.

Curiosamente, esse renovado interesse pela ciência e seus feitos atualiza perguntas antigas: como definir o que é ciência? Como distinguir ciência de pseudociência ou outros saberes? De onde a ciência extrai seu prestígio? Embora não se dedique a essas indagações, o recém-lançado livro de Natália Pasternak e Carlos Orsi ( Que bobagem! Pseudociência e outros absurdos que não devem ser levados a sério ) retoma polêmicas que dependem dessa definição. Ao longo de 12 capítulos, os autores destacam os perigos relacionados a doutrinas e práticas humanas que reivindicam, emulam ou se alimentam de alguma concepção de ciência, mas que não passariam de crendices sem base nas evidências, da astrologia à acupuntura, passando pelas dietas milagrosas à psicanálise.

Está fora de debate a importância de alertas como alguns dos contidos no livro, especialmente depois que o Brasil teve de lidar, assim como outros países, com líderes políticos que alimentaram toda sorte de pseudociência às custas de milhares de mortes evitáveis. Por outro lado, se o pêndulo político hoje parece lentamente oscilar contra o negacionismo e na direção da ciência, não podemos correr o risco de reforçar um estereótipo contra outro.

Uma das simplificações mais problemáticas do livro é aquela que define a ciência como uma espécie de atitude ou postura em relação ao mundo: “o prestígio a que a ciência faz jus vem de sua atitude fundamental de respeito pela totalidade da evidência – principalmente, pela parte que contradiz aquilo em que gostaríamos de acreditar – e de abertura à revisão crítica”. Essa perspectiva ignora que aquilo que chamamos hoje de “ciência” é mais um empreendimento coletivo, altamente institucionalizado e regulado e não apenas uma postura frente aos fatos. Mais do que isso, a ciência deve ser vista como um enorme maquinário institucional montado para abrigar teorias divergentes, mas, ao termo, afastar as falsas. Maquinário este que, aliás, pode falhar ocasionalmente.

Em suma, não é uma suposta “atitude científica” que torna os(as) cientistas mais ou menos corretos, mas sim os aparatos institucionais e as regulações coletivas que fazem da ciência um espaço de controle dos erros e equívocos. Esses aparatos envolvem, dentre outras coisas, os sistemas de avaliação por pares (que vão muito além daquele empregado pelas revistas acadêmicas), de replicação de experimentos e de normatização da comunicação científica (quase sempre, via matematização). Todos eles operam no sentido de filtrar teorias que não funcionam ou não são generalizáveis daquelas capazes de ser comunicadas de modo estável, avaliadas e replicadas por pares, de modo a estabilizar consensos entre os especialistas, ainda que temporariamente.

Luiz Augusto Camposé professor de sociologia e ciência política no IESP-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o GEMAA. É autor e coautor de vários artigos e livros sobre a relação entre democracia e as desigualdades raciais e de gênero, dentre os quais “Raça e eleições no Brasil” e “Ação afirmativa: conceito, debates e história”.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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