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Adriana Ferreira Silva

PL do estuprador: a perversão masculina contra mulheres

20 de junho de 2024

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Aos fundamentalistas, não interessa discutir o violento, nocivo, perigoso e nojento comportamento masculino perpetuado por séculos

A primeira vez que fui vítima de assédio, tinha uns 11 anos. Foi na esquina da casa da minha avó, numa tarde bonita de sol e céu azul. Na época, ela morava num bairro da zona leste paulistana que, na década de 1980, ainda mantinha um clima interiorano. Todos os vizinhos se conheciam. A família do meu pai vivia na mesma rua dos meus avós maternos, quase de frente uma para a outra.

Passei a infância indo de um lado pro outro. Almoçava com uma avó, tomava café com a outra. Detalho esses pormenores pois, quando se trata de assédio e violência sexual, o cenário que costuma se desenhar é o de um filme noir: festa imprópria, gente esquisita, rua vazia, escura, madrugada, vizinhança perigosa, sombras sinistras, roupa indecente… 

Todos componentes usados para ressaltar os perigos que a rua representa para meninas, jovens, mulheres e, por consequência, transferir à vítima a culpa por qualquer coisa que venha a lhe acontecer, pois todas sabemos (ou deveríamos saber) de tudo isso desde o útero materno.

Não lembro exatamente de onde voltava naquela tarde ensolarada, mas não devia ser de muito longe porque, aos 11 anos, só me deixavam ir sozinha à vendinha da esquina. Só sei que no caminho, um carro, um Fusca, parou ao meu lado. No volante, um homem branco me chamou e perguntou se eu sabia onde ficava a rua X. Quando virei para responder, vi que ele estava com a calça aberta. Seu olhar me atravessou. Senti uma onda gelada percorrendo minha espinha. Fiquei muda e devo ter corrido porque, em segundos, estava de volta à minha avó.

Essa imagem me persegue até hoje. O único pênis que eu conhecia até então estava no livro “De onde vêm os bebês”, e era uma ilustração. Tampouco havia sido “preparada” para lidar com a situação. Acredito que, naquele tempo, não passava pela cabeça de ninguém da família que um homem abordaria uma criança à luz do dia, num bairro tão “tranquilo”.

Adriana Ferreira Silvaé jornalista, escritora, mediadora, curadora e palestrante. cofundadora da Grená - agência de criação, atua como curadora da jornada galápagos de jornalismo e escreve para as revistas Quatro Cinco Um e Numéro Brasil. Em 25 anos de carreira, foi correspondente em Paris e participou de coberturas internacionais, com destaque para reportagens durante os ataques ao World Trade Center, em Nova York, em 2001; E os atentados terroristas na França, em 2015. Trabalhou nas redações das revistas Marie claire, Vogue Brasil e Veja São Paulo; no jornal Folha de São Paulo e como colunista da Rádio CBN.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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