327 cadernos: notas sobre o escritor argentino Ricardo Piglia

Ensaio

327 cadernos: notas sobre o escritor argentino Ricardo Piglia
Foto: Jorge Silva/Reuters - 03.08.2011

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Leandro Sarmatz


06 de janeiro de 2017

Havia uma circunstância dolorosa por trás da decisão de publicar as anotações de toda uma vida

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Há 60 anos, em 1957, o adolescente Ricardo Emilio Piglia Renzi, morador de Adrogué, a pouco mais de vinte quilômetros de Buenos Aires, começava a escrever um diário. Naquele período formativo, as páginas eram seu laboratório de escrita. A princípio — dizia Emilio Renzi, o nome que Piglia adotaria em diversos textos ficcionais para tensionar as cordas da veracidade literária — não havia muita coisa para contar. Pequenas anedotas familiares, o entusiasmo crescente pelos livros, o cotidiano meio modorrento daquela Argentina pós-Peron. Até que percebeu que o próprio ato de escrever poderia ser um exercício, sobretudo de estilo. Valia experimentar. Como quase todo escritor com um pingo de orgulho próprio, Renzi-Piglia considerava que escrevia melhor no passado. “Tinha uma convicção absoluta e o estilo não é outra coisa que a convicção absoluta de ter um estilo”, anotou na introdução de “Los Diarios de Emilio Renzi: Años de Formación”, o primeiro de uma série de três volumes baseados na transcrição dos cadernos escritos entre 1957 e 2015.

Finalmente, os famosos diários que Ricardo Piglia deixava entrever aqui e ali — em textos publicados na imprensa ou em breves introduções a obras de outros autores — ganhavam a luz do dia. E a publicação foi saudada como um acontecimento. De fato não era pouca coisa. Praticamente 30 anos depois da morte de Borges, e com a primeira geração do boom morta ou nos estertores (Vargas Llosa não escreve um livro consistente desde “Lituma nos Andes”, de 1993), sem falar na ausência precoce de Bolaño, Piglia era um desses raros autores que, por sua visada original e crítica da literatura, marcam o trabalho de escritores e críticos contemporâneos.

Havia uma circunstância dolorosa por trás da decisão de publicar as anotações de toda uma vida. Aos 74 anos, Piglia foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma condição debilitante e terminal (a mesma que vitimou o historiador britânico Tony Judt em 2010) em que o corpo vai se desligando aos poucos, mantendo intactas, contudo, as faculdades intelectuais. Ao longo de uma produtiva trajetória de escritor, crítico e professor universitário, Piglia preencheu nada menos que 327 cadernos (idênticos, de capa preta), o registro minucioso de toda uma vida: os amores, as leituras, as peripécias nos bares e cafés portenhos, uma obra em construção. Em 2015, o cineasta Andrés Di Tella lançou o documentário “ 327 cuadernos ”, um passeio pela intimidade do autor através dessa copiosa coleção de anotações.

A poética do arquivo, os diários como potência criativa sempre estiveram presentes na obra de Piglia, essa construção poliédrica em que o ato da leitura, a crítica e a ficção se interpelam incessantemente. Sua obra-prima, o romance “Respiração Artificial” (1980), já dava conta dessa estratégia ao acumular, em constante diálogo, a forma do registro pessoal, da escrita epistolar, do diário e do próprio exercício crítico. Nada mais natural para um autor que considerava os “Diários”, de Kafka, uma das realizações supremas da literatura. Era inclusive a única obra a que Piglia recorria quando estava escrevendo um livro.

Nos registros do autor de “A Metamorfose”, o argentino podia encontrar uma afinidade com esse ato de leitura que abarca todos os aspectos, literários ou extraliterários, de uma vida. Ou, como anotou num dos ensaios publicado em “O Último Leitor”: “Kafka escreve um diário para ler novamente as conexões que não viu ao viver. Poder-se-ia dizer que escreve seu ‘Diário’ para ler, deslocado, o sentido em outro lugar. Só entende o que viveu, ou o que está por viver, quando está escrito. Narrar não serve para recordar, mas para tornar visível. Para tornar visíveis as conexões, os gestos, os lugares, a disposição dos corpos.”

E tudo parece conectado nos diários de Renzi. Seu avô Emilio, italiano, havia participado da Primeira Guerra incumbido da missão de escrever cartas anunciando a morte dos soldados a suas famílias. A escrita e a leitura logo se tornariam uma obsessão na vida do neto argentino. E, claro, numa cultura literária em que Borges ocupava o centro, livros e autores (argentinos mas também com um especial pendor para os norte-americanos) formaram a constelação de interesses do jovem. Nos dez anos cobertos pelo primeiro volume, tempo decisivo entre o ingresso na universidade e a publicação de “A Invasão”, seu livro de estreia, Piglia abraçou o anarquismo, se viu às voltas com algumas namoradas (que o despedaçaram emocionalmente) e, sobretudo, fez da leitura um ato criativo. E político.

A leitura encarada como operação altamente transgressora e criativa à maneira de Borges, que não por acaso aparece em diversos momentos críticos do volume. “Encontro com Borges. Sensação de estar diante da literatura, ou melhor, de ver em ação uma máquina maravilhosa de fazer literatura” (agosto de 1965). A mesma impressão que experimentamos ao ler os “Diários”. Ainda que precocemente, Renzi já trabalhava a partir das diversas obsessões particulares que iriam atravessar a obra do futuro escritor. Já estavam ali as aproximações capciosas entre personagens da literatura e a busca de uma identidade argentina nos termos — novamente borgeanos — da apropriação e recriação das diversas correntes culturais que confluem para a vida intelectual rio-platense.

Também estão nos “Diários” seu desdém por “Cem Anos de Solidão” (mistura folclorizada de Jorge Amado com Federico Fellini, tascou), sua admiração por Cortázar, as intrigas medonhas do meio intelectual portenho, os debates em voga (a esquerda, o romance norte-americano, a nouvelle vague etc). O retrato de um tumulto pessoal em um tempo igualmente conflagrado na cultura, na política, nos costumes. Tudo filtrado por esse Eu que, sendo de Renzi, não era totalmente o de Piglia. Ou, como lemos num dos momentos finais do volume: “O eu, de todos os signos da linguagem, é o mais difícil de manobrar, é o último adquirido pela criança e o primeiro que o afásico perde”. E a sua voz — seja entendida aqui a de Renzi ou de Piglia — estava toda ali, antes que o silêncio se instalasse.

Leandro Sarmatz é jornalista, autor dos livros “Logocausto” (Editora da Casa) e “Uma fome” (Editora Record) e foi editor da Companhia das Letras.

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