A capacidade para a dúvida. Ou como evitar a receita da catástrofe

Ensaio

A capacidade para a dúvida. Ou como evitar a receita da catástrofe
Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

 André De Martini


25 de setembro de 2018

Algo preocupante acontece quando preferimos o discurso rápido que se impõe ao outro pela força e de modo violento

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Quando alguma polêmica captura as paixões e o debate público, passamos por uma espécie de exercício coletivo de lidar com conflitos e divergências. Algumas que me vêm à mente: a causa da morte do Ayrton Senna, os rolezinhos em São Paulo, o impeachment de Dilma Rousseff, a eleição de Donald Trump, o corpo nu no museu, o 7×1, o acordo das Coreias, Marielle Franco assassinada, o clipe da Anitta ou a revelação sobre as autorizações de Ernesto Geisel para assassinatos de opositores ao regime.

Com o tempo, as discussões e assuntos vão esfriando até serem esquecidos ou ofuscados por um novo tema da vez. Sejam banalidades ou coisas muito sérias, há qualquer coisa de ameaçador quando somos frontalmente contrariados. Por exemplo, nos debates políticos recentes, fala-se bastante da cisão ou polarização das opiniões como algo muito ruim ou perigoso para a sociedade.

O sentimento de estarmos certos é muito prazeroso. Essas polêmicas são prato cheio para acaloradas conversas de bar, gostamos de chegar a opiniões sobre tudo. Mas nem sempre a coisa acontece no registro do prazer, e ficamos ansiosos ou angustiados quando não estamos muito seguros, ou quando percebemos contradições naquilo de que achávamos ter certeza.

É difícil sustentar o reconhecimento da ignorância ou a incerteza. Alguns estrangeiros reclamam que o brasileiro é tão zeloso ao dar informações na rua, que aponta a direção e dá instruções até quando não sabe o caminho. Mas, para além das situações pitorescas, algo mais preocupante acontece quando, em vez de suportar a dúvida e a insegurança, preferimos o discurso rápido que se impõe ao outro pela força e de modo violento.

Não à toa, as fake news são um sucesso. Em vez de ter que lidar com a complexa e frustrante realidade de uma determinada questão (que exigiria tempo e estômago) tudo pode se resolver com uma única mensagem de whatsapp ou uma notícia que diz tudo aquilo que você gostaria de ouvir. O principal objetivo de toda fake news é encerrar uma questão, impedir que se pense mais adiante sobre ela.

A palavra pode se tornar algo como um aríete, em que colocamos toda nossa força para abrir caminho e derrubar tudo na frente. O diálogo é substituído por uma luta de sumô – quem empurrar mais forte, acha que levou. A capacidade para a dúvida é substituída pelo fascínio da força, que dispensa a frustração de suspender as próprias certezas para poder conversar com alguém que pensa de forma diferente.

Ninguém gosta muito de ficar na dúvida, de não saber onde está pisando. Mas se colocar intencionalmente na dúvida – e  suportar ficar com ela – é indispensável para tentar entender por que o outro pensa de forma tão contrária à nossa.Ela é indispensável para o pensar, inclusive sobre nossas próprias ideias.

Se não conseguimos pensar algo, o máximo que podemos fazer com uma ideia que nos contradiz e questiona é vomitá-la, colocá-la para fora, projetar para outra coisa, recusar, aniquilar. Nesse tipo de situação, usamos a linguagem não para nos comunicar, mas para nos livrar de um excesso, palavras e pensamentos que são intoleráveis. O grito ou o xingamento são formas de nos livrar da frustração ou da raiva. A palavra – o palavrão – carrega uma parte das intensidades para fora, trazendo um alívio imediato.

Reconhecer a dimensão trágica de nossa existência significa nos tornarmos mais capazes de suportar a dor e a dúvida. É justamente isso que a atitude obtusa não consegue ou prefere não fazer

Em certa medida, com maior ou menor sutileza, todos nós fazemos isso, e faz parte da natureza da linguagem também funcionar dessa forma. Os bebês urram com todas as forças por coisas como fome, frio, calor, desconforto físico, falta da mãe, sono… Aos poucos, quando começam a adentrar mais a linguagem, vão aprendendo outras formas de lidar com a frustração e dor, e passam a ser capazes de antever a remediação daquela situação. Além de chorar, começam também a entender que o adultodiz algo sobre aquilo que eles sentem – o que mais tarde eles próprios poderão fazer. Contudo (e há uma bela ironia nisso), mesmo no adulto as palavras e a linguagem podem, por sua vez, ser usadas não para comunicar, mas como válvula de escape, como um urro. 

A psicanálise encontrou na tragédia grega um modelo que reflete a complexidade da mente humana: nascemos em um mundo que supera em muito os recursos que temos para apreendê-lo, somos atravessados por forças e destinos que vão muito além de nosso controle e de nossa apreensão pela consciência. A realidade (e nisso também se inclui a realidade interna de nossa própria mente) possui uma complexidade que nos obriga a conviver com a dúvida e parcialidade do conhecimento.

Reconhecer a dimensão trágica de nossa existência significa nos tornarmos mais capazes de suportar a dor e a dúvida. É justamente isso que a atitude obtusa não consegue ou prefere não fazer – ao invés, busca soluções mágicas e dogmáticas – simples – que resolvam as contradições e deem a sensação (ainda que ilusória) de ausência de dúvida.

A demonização do outro, do opositor, pode também carregar um motivo mais profundo: ele passa a ser depositário daqueles aspectos da realidade que eu prefiro não enxergar ou reconhecer em mim mesmo. As dúvidas e incertezas, quando não temos a capacidade para suportá-las, podem ser perturbadoras da confiança na realidade: o mundo passa a ser um lugar ameaçador e hostil, cheio de demônios. Nesse caso, alguma compensação é conseguida com muito esforço mental, por meio de fantasias de controle e onipotência – como mais muros e armas, por exemplo.

Uma das características mais estarrecedoras dos genocídios dos judeus na Alemanha nazista, dos indígenas na colonização das Américas, ou dos congoleses sob domínio do príncipe belga Leopoldo II era a aparente racionalidade asséptica dos extermínios, realizados de forma lógica e simples. O pensar, nesses períodos, era substituído pela simplicidade brutal das ordens, pelos dogmas e pela burocracia. Não havia espaço para a dúvida, para o diferente, para o meio termo, para o que fosse mestiço. Nesse estado paranoide, o que quer que contrarie as certezas é visto como contaminado, sujo, degenerado, e precisa ser eliminado.

Um mundo de certezas rígidas, avesso a transformações, constitui um cenário compensatório ideal quando a capacidade para a dúvida está ausente. Por exemplo, a atitude conservadora exagerada ou excessiva pode ser indicadora de que quaisquer mudanças, por si só, são sentidas como ameaçadoras. O que se ameaça, do ponto de vista psicológico, é a própria identidade, ou o sentimento de confiança no mundo.

A certeza ignóbil, além disso, se esforçará ao máximo para tornar tudo aquilo que é desconhecido e estrangeiro em coisa conhecida. A familiaridade é o terreno a ser defendido, e não raro a xenofobia também encontra aqui seu lugar: o mesmo, a uniformidade, “os meus”, a recusa da diferença. Contudo, o contato com a realidade exige mais: é preciso espaço para a surpresa, para a dúvida e para o desconhecido.

Wilfred Bion, um psicanalista inglês, debruçou-se sobre o tema da arrogância em sua clínica, fazendo a correlação entre três elementos: a curiosidade, a arrogância e a estupidez. Nesta relação, a curiosidade é o elemento que se perde, quando há o predomínio de um estado de arrogância. A estupidez passa a estar presente de maneira oculta, enquanto des-conhecimento dessa perda – faz parte da arrogância o ocultamento ou não reconhecimento da própria estupidez. Por fim, a própria ligação entre esses três elementos é perdida.

Em um cenário assim, a estupidez não é acidental, mas tem um propósito. Ela ativamente busca suprimir qualquer fragmento de curiosidade ou indício que leve ao evento que gerou o estado de arrogância e a perda da curiosidade. De modo inverso, o reconhecimento da própria estupidez representaria um primeiro passo na recuperação daquilo que foi perdido.

A capacidade para a dúvida é uma conquista fundamental que exige suportarmos uma dose considerável de frustração. Sem ela temos uma receita certa para catástrofes.

 André De Martinié psicanalista e professor doutor pelo Instituto de Psicologia da USP. Atualmente, divide-se entre a prática clínica em São Paulo e Rio de Janeiro e a pesquisa sobre psicanálise e linguagem literária.

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