Em 1865, Charles Lutwidge Dogson, sob o pseudônimo de Lewis Caroll, publica a história da pequena Alice que quando cai numa toca de coelho é transportada para um lugar fantástico: o país das maravilhas. O país desbravado pela pequena/grande Alice tem menos maravilhas e mais intrigas, enigmas e conchavos de que os pequenos leitores podem esperar, demandando perspicácia e reflexão de adultos e emancipados. Alice, uma criança racional e corajosa, o desbrava na medida que a aventura persegue, nos encontros com os medrosos, os “sempre atrasados”, os servos, os humildes, os autoritários, os loucos e os lúcidos; enfim, os personagens da “vida como ela é”.
Em 2019, um autor “desconhecido” circula um texto sobre um país “ingovernável fora de conchavos” chamado Brasil. Os leitores mirins da “Alice no país das maravilhas” tornaram-se adultos, mas não perderam a ilusão do um país maravilha, onde a corrupção é apenas o efeito de uma doença passageira de um governo corrupto, porém substituível. Os que imaginavam que os problemas complexos do país se resumiam a uma simples solução – a mudança do governo – se sentem decepcionados e acusam pelo sequestro do Estado os típicos personagens de Caroll: empresários, sindicalistas, a burocracia, o Judiciário e o Congresso, entre outras corporações.
O país das maravilhas onde se governa sem conchavos não se concebeu nem nas utopias mais usadas da humanidade. Como seria um mundo sem empresários, sindicalistas, Judiciário, Congresso, burocratas, ONGs e outras “corporações” não corporativistas? O que significa “governar de acordo com o interesse dos eleitores”? Por que é tão difícil até imaginar um governo que aglutina esta massa amorfa de “eleitores” num mundo sem interesses plurais e antagônicos?
A gestão pública em ambientes democráticos é desafiadora. Desde a proclamação da Constituição Cidadã de 1988 ainda recorremos a estruturas e modelos mentais arcaicos para gerir o bem público
A resposta deveria ser óbvia: este mundo real e difícil de navegar é chamado de democracia. A política é a arte de navegar entre esses interesses divergentes e contraditórios do mundo “como ele e”; é a habilidade de construir políticas públicas que beneficiem a maioria onde os interesses particulares pressionam para o contrário. A democracia não é o melhor dos mundos. Mas é um mundo muito melhor de que qualquer alternativa não democrática como a história, assim como as inúmeras evidências empíricas, inclusive sobre Brasil, já demonstraram.
Vale também lembrar que o Brasil não é único neste vasto mundo. Uma simples leitura diária de jornal traz os exemplos mais variados: o vice-chanceler austríaco de extrema direita da Áustria acusado de corrupção em troca de apoio eleitoral; o líder do partido “Brexit”, Nigel Farage, acusado de não declarar financiamentos de doadores suspeitos durante o referendo são apenas dois exemplos dos mais recentes que não estão circunscritos a países tradicionalmente acusados de corrupção sistêmica e nem à esquerda “caviar”. Outros exemplos seguem em países como Israel, Itália ou Hungria, com maior ou menor grau de cultura democrática.
Reconheço que é custoso, doloroso, acordar num mundo democrático, assolado por índices alarmantes de pobreza, desemprego e violência, para não mencionar a crise econômica e fiscal que esvaziou os cofres públicos. Várias reformas do novo governo enfrentam resistências no âmbito do Legislativo, do Judiciário e dos interesses organizados da sociedade. Hoje, a este conglomerado de resistências se junta a pressão internacional perante a questão ambiental. Instituições que pareciam sólidas ameaçam desmanchar no ar; coalizões que pareciam eternas correm o risco de se desfazer.
A democracia se testa diariamente. Quando os problemas estruturais que enfrentamos se tornam emergenciais, torna-se difícil de resistir à tentação de ignorar as normas tácitas que regem a dinâmica democrática. Mas problemas complexos não se resolvem com respostas simples que recorrem a teorias conspiratórias ou reificam heróis-vilões de estimação.
Desbravar este caminho demanda a ousadia e a tenacidade da Alice. O país dos conchavos pode se tornar governável – como demonstrou nas últimas décadas – quando as premissas democráticas se tomam inquestionáveis e guiam a retórica e a ação dos detentores de poder democraticamente escolhidos. A democracia e as normas tácitas que a regem funcionam. É instrutivo observar que nos momentos de grave crise, não falta ao Congresso a sensibilidade política para articular negociações que viabilizam, ainda que parcialmente, a saída, ao exemplo da reforma da Previdência.
Políticas públicas formuladas e implementadas em ambientes que respeitam essas normas trazem resultados mais sustentáveis. Resgato apenas dois exemplos: a autonomia de órgãos burocráticos como a Polícia Federal ou Ministério Público é um dos fatores que sustentou operações complexas de combate à corrupção; sem a rede de parcerias com organizações de terceiro setor muitos dos serviços públicos em áreas como saúde pública ou educação não chegariam sequer ao cidadão. Precisamos melhorar? Muito. Mas qualquer reforma da gestão pública deve buscar consolidar valores democráticos como transparência, autonomia, processualismo, justiça, equidade entre tantas outras conquistas da longa trajetória civilizatória percorrida por sociedades modernas.
A gestão pública em ambientes democráticos é desafiadora. Desde a proclamação da Constituição Cidadã de 1988 ainda recorremos a estruturas e modelos mentais arcaicos para gerir o bem público. Mudanças nessas estruturas e modelos são mais que necessárias e serão discutidas em outro artigo.
Alketa Pecié professora da Ebape-FGV, com pós-doutorado na London School of Economics and Political Science.